SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 17 de outubro de 2014

ATRÁS DA PORTA, DENTRO DA VIDA


Rangel Alves da Costa*


Ao avistar um casebre, uma choupana, uma tapera erguida no barro e cipó, talvez a pessoa enxergue apenas a pobreza, a fragilidade da moradia, a situação de abandono e sofrimento. Tudo se apresenta com tais características. Mas poderá avistar muito mais, bastando ultrapassar a soleira.
A feição já diz tudo. Não deve ser muito diferente lá dentro quando a penúria se mostra do lado de fora. Não deve haver uma mesa farta quando a janela de madeira se mostra apodrecida, não deve haver louça reluzente se a porta está caindo aos pedaços, não deve haver mobiliário com o barro despencando da parede.
Ninguém espere encontrar um copo de água gelada onde há dificuldade até de adquirir um pote novo, filtro ou moringa. O cachorro magro não é porque o mesmo rejeita as muitas sobras colocadas à sua frente. É pela falta de comida mesmo. O olhar entristecido, a tez de profunda aflição, não é por nostalgia ou saudade. E sim de sofrimento pela desvalia da vida, de angústia pelas carências tantas.
Não há pai ou mãe que não se encha de agonias ao perceber que logo o seu filho dirá que está com fome, pedirá qualquer alimento, e o vazio da resposta desafiará toda a existência. O adulto suporta a fome e um tanto grande de sede, a maturidade traz consigo a compreensão e o suportar os padecimentos, mas com criança é diferente. Ela apenas pede e espera que os seus pais estendam a mão. Ou o prato.
Difícil ocorrer o contrário, mas quase sempre a fachada e arredores retratam com fidelidade a feição exterior. Depois do espelho a verdade. Dificilmente a estrutura empobrecida, com barro despencando aos poucos ou fendas de passagem para chuva e sol, guardará um aspecto muito diferente nas suas entranhas, nos seus vãos ou desvãos.
Não será impossível, contudo, de acontecer o inusitado. Gente há que mal tem onde se abrigar, onde estender uma cama, mas prefere roupa nova e cara, televisão moderna e modismos luxuosos a ter uma panela no fogo, um alimento à mesa. Prefere viver com fingimento a reconhecer seus limites. Passa fome, mas materializa o irreal com endividamento.
Assim, ao avistar uma casinha de barro toda carcomida, já com marcas profundas do tempo, com jeito de que não ficará em pé depois de uma tempestade ou ventania mais forte, que não se espere avistar mobiliário vistoso, despensa farta e feições sempre sorridentes lá dentro. Certamente que os semblantes dos moradores estarão serenos, vez que acostumados com a situação.
E coisa estranha acontece em situações assim. Quanto mais o povo é empobrecido mais se mostra contagiante, cheio de vivacidade, transbordando encorajamento. Nenhuma camada social recebe e acolhe melhor que aquela vivente em situação de extrema dificuldade. Sempre haverá um gesto de afeto, um olhar de satisfação pela visita, o oferecimento do que houver no momento.
Tudo muito contrastante com a realidade. O visitante logo fica sem entender como uma gente lastreada na miséria e no sofrimento consegue manter tanto afeto, placidez, contentamento. E também pouco entenderá sobre sua fé incontida, sobre sua esperança alentada, sobre sua força para ir enfrentando tantos desafios na estrada. E a indagação maior surgindo ao querer saber como consegue sobreviver em meio ao quase nada.
Ao menos no meu sertão, as durezas da vida são logo avistadas ao longe, desde a paisagem entristecida, passando pela cancela caída e chegando perante a parede que ainda esteja em pé. Mas a realidade mais profunda está sempre lá dentro, após a porta de entrada, que pode ser apenas qualquer coisa que divise os poucos aposentos do mundo lá fora.
É atrás da porta que a realidade se mostra na sua inteireza maior, na sua contundência mais profunda, sem meio termo ou talvez. O que se avista é o que é, o que se encontra é o que se tem, o que ali emoldurado não pode ser retocado. O que engana é a barriga grande da criancinha, que está cheia de verminoses e não de comida. O que ilude é a criança mastigando, que é o barro do pé da parede e não pedaço de pão.
Acaso o fogão esteja sem panela por cima é porque não houve nada para ser assado ou cozido. Acaso o pote não esteja suado na parte de baixo é porque não há mais nem um pingo d’água. Acaso o menino esteja chorando sem parar é porque a fome já chegou, já foi embora, retornou e não há nada que pareça comida. Mas os acasos vão se repetindo de tal modo que logo se tornam em situações costumeiras.
Assim, a realidade sem retoques está dentro das quatro paredes. O lado de fora pode até enganar, mas dentro da casa não há como encobrir a nudez da desvalia. É como se fosse a representação exata do ser humano. Mesmo que a aparência permita ser imaginado diferente, basta exteriorizar seus instintos e as verdades surgirão sem disfarces. Daí que da soleira da porta em diante tudo se revela, ainda que a moldura carcomida já dissesse do retrato em preto e branco.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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