Rangel Alves da Costa*
Hoje ainda ocorre assim em muitos aspectos, mas
a eleição de antigamente era quase toda decidida ao cair da noite da véspera e
adentrando a madrugada do dia do pleito. As forças se moviam como bichos noturnos,
furtivos, rastejantes, fechando os últimos acordos, alimentando os bolsos
famintos, ultimando os preparativos para que as urnas já chegassem aos locais
de votação devidamente batizadas.
Coronel Tiburciano Cabroeira não se cansava
de dizer que urna era a rapariga mais safada que podia existir, pois aceitava
tudo em troca de dinheiro. Já Santinho, o vigário metido a comunista, dizia que
não havia nada mais impuro e abominável sobre a terra que as entranhas de uma
urna. E ajuntava: Ai quem dera urna ter dor de barriga e despejar toda
imundície diante daqueles que a alimentam de roubalheiras, de votos ferrados
pelas patas do coronel, de tudo que não presta.
Mas o batizamento da urna era apenas uma
sutileza diante das ocorrências noturnas da véspera e das arrumações
perpetradas da madrugada ao raiar do sol. Quem avistasse aquele mundão
interiorano com feição de normalidade, com seu sol tomando todos os quadrantes,
nem imaginaria o quanto havia sido remexido e revirado nas últimas horas. E
assim porque o silêncio absoluto reinava entre todos que haviam participado dos
ardis, conluios e maquinações. A dissimulação também nos eleitores que haviam
feito negociatas de última hora com candidatos adversários.
Bem antes disso todo tipo de ilicitude
eleitoral era pensada como estratégia vitoriosa. Houve um tempo de o próprio
pleiteante se apossar do título de eleitor de todos aqueles que o procurassem
em busca de favores, de uma cesta de alimentos, de uma consulta médica, de
óculos com grau igual para todo mundo ou dentadura sempre desconforme na boca.
Segurava o título, fazia as devidas anotações no velho caderno, e só entregava
de volta na madrugada da eleição. Ou até não devolvia, pois o documento
serviria para que outro fosse fazer às vezes daquele não confiável. E votava
tranquilamente, bem assim defuntos de muito tempo.
E assim acontecia porque naquelas disputas ocorria
de tudo, principalmente para favorecer grupos políticos ou protegidos da
governança estadual. Pelo poder, dinheiro ou ordens superiores, a verdade é que
presidentes de seções e mesários, cuidadosamente escolhidos para o ofício da
cumplicidade, de repente cegavam completamente diante da corrupção do poder ou
do poder corruptor. Conivente, a justiça eleitoral ficava somente nas
providências e estava acabado. Mas diferente acontecia se um candidato
zé-ninguém ou antigovernista ao menos fosse imaginado colocando uns trocados
num bolso faminto. Então a mão da lei eleitoral descia arrebentando.
De qualquer modo, fosse poderoso ou menos
aquinhoado o candidato, alguns costumes desavergonhados e lamacentos eram
sempre levados a efeito. Distribuía-se dinheiro pela metade, com a outra metade
da nota servindo como garantia do voto. Depois, caso eleito, era só
providenciar a emenda e pronto. À surdina, notas e mais notas de compras eram
entregues com validade a partir do dia seguinte ao pleito. Mas somente com a
vitória garantida. Além disso, ao pé do ouvido as promessas mirabolantes, de
emprego para toda a família, de fartura dali em diante e tudo o mais.
Tais procedimentos eram somente a ponta do
iceberg nas artimanhas eleitorais nos tempos idos. Mas que, pela continuidade
de muitas práticas, um tempo que não parece muito distante. Como não caía bem
ao candidato utilizar a própria residência para distribuir dinheiro, tecidos,
alimentos, colchões, sacos de cimento e um verdadeiro arsenal de favores
eleitoreiros, então casas de cabos eleitorais eram utilizadas com tal
finalidade. E assim, sempre pela porta dos fundos, às escondidas, verdadeiras
filas se formavam para o recebimento do quinhão pelo voto negociado. E assim a
madrugada inteira, numa gastança incessante para evitar as surpresas das urnas.
Os candidatos tinham razão em temer a leitura
das urnas. De inocente elas não tinham nada, pois previamente violadas, já
chegando buchudas, prenhes aos locais de votação. Dela se fazia uso e desuso
segundo a conveniência das forças políticas municipais e estaduais. Ora, era do
conhecimento de todos que elas faziam verdadeiros milagres e transformavam
derrotados em vitoriosos num passe de mágica. Não raro que fossem gulosas demais
e acabassem vomitando mais votos que os eleitores da seção. E durante a
contagem manual eram comuns as práticas ardilosas da transferência de votos de
um para outro candidato.
Mas haveria de se dizer que havia a justiça
eleitoral para combater tais práticas. Sim, mas o poder da justiça interiorana
era sempre de hierarquia inferior ao poder de mando e comando dos coronéis da
política e dos poderosos. E comuns eram os casos de apadrinhamento e proteção
escancarada da lei a determinados candidatos. Em algumas situações, era a
própria justiça eleitoral que retinha o título de eleitores de determinado
pleiteante. Era ela também que tudo permitia a uns e tudo proibia a outros. Era
ela que também inventava a prática de ilícito eleitoral para prender o opositor
e deixar o caminho totalmente livre para o protegido do rei.
Certa feita, o sertanejo Tefôncio, também
conhecido por Teté Boca de Urna, resolveu, a mando do Coronel Licurguino,
distribuir dinheiro, óculos e dentaduras na fila de votação. Ao tomar
conhecimento da prática, o juiz eleitoral logo expediu ordem de prisão. Mas
contra todo aquele que dissesse que aquele gesto bondoso e humanitário era
ilegal.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
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