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segunda-feira, 6 de outubro de 2014

ELEIÇÃO (ÀS ANTIGAS)


Rangel Alves da Costa*


Hoje ainda ocorre assim em muitos aspectos, mas a eleição de antigamente era quase toda decidida ao cair da noite da véspera e adentrando a madrugada do dia do pleito. As forças se moviam como bichos noturnos, furtivos, rastejantes, fechando os últimos acordos, alimentando os bolsos famintos, ultimando os preparativos para que as urnas já chegassem aos locais de votação devidamente batizadas.
Coronel Tiburciano Cabroeira não se cansava de dizer que urna era a rapariga mais safada que podia existir, pois aceitava tudo em troca de dinheiro. Já Santinho, o vigário metido a comunista, dizia que não havia nada mais impuro e abominável sobre a terra que as entranhas de uma urna. E ajuntava: Ai quem dera urna ter dor de barriga e despejar toda imundície diante daqueles que a alimentam de roubalheiras, de votos ferrados pelas patas do coronel, de tudo que não presta.
Mas o batizamento da urna era apenas uma sutileza diante das ocorrências noturnas da véspera e das arrumações perpetradas da madrugada ao raiar do sol. Quem avistasse aquele mundão interiorano com feição de normalidade, com seu sol tomando todos os quadrantes, nem imaginaria o quanto havia sido remexido e revirado nas últimas horas. E assim porque o silêncio absoluto reinava entre todos que haviam participado dos ardis, conluios e maquinações. A dissimulação também nos eleitores que haviam feito negociatas de última hora com candidatos adversários.
Bem antes disso todo tipo de ilicitude eleitoral era pensada como estratégia vitoriosa. Houve um tempo de o próprio pleiteante se apossar do título de eleitor de todos aqueles que o procurassem em busca de favores, de uma cesta de alimentos, de uma consulta médica, de óculos com grau igual para todo mundo ou dentadura sempre desconforme na boca. Segurava o título, fazia as devidas anotações no velho caderno, e só entregava de volta na madrugada da eleição. Ou até não devolvia, pois o documento serviria para que outro fosse fazer às vezes daquele não confiável. E votava tranquilamente, bem assim defuntos de muito tempo.
E assim acontecia porque naquelas disputas ocorria de tudo, principalmente para favorecer grupos políticos ou protegidos da governança estadual. Pelo poder, dinheiro ou ordens superiores, a verdade é que presidentes de seções e mesários, cuidadosamente escolhidos para o ofício da cumplicidade, de repente cegavam completamente diante da corrupção do poder ou do poder corruptor. Conivente, a justiça eleitoral ficava somente nas providências e estava acabado. Mas diferente acontecia se um candidato zé-ninguém ou antigovernista ao menos fosse imaginado colocando uns trocados num bolso faminto. Então a mão da lei eleitoral descia arrebentando.
De qualquer modo, fosse poderoso ou menos aquinhoado o candidato, alguns costumes desavergonhados e lamacentos eram sempre levados a efeito. Distribuía-se dinheiro pela metade, com a outra metade da nota servindo como garantia do voto. Depois, caso eleito, era só providenciar a emenda e pronto. À surdina, notas e mais notas de compras eram entregues com validade a partir do dia seguinte ao pleito. Mas somente com a vitória garantida. Além disso, ao pé do ouvido as promessas mirabolantes, de emprego para toda a família, de fartura dali em diante e tudo o mais.
Tais procedimentos eram somente a ponta do iceberg nas artimanhas eleitorais nos tempos idos. Mas que, pela continuidade de muitas práticas, um tempo que não parece muito distante. Como não caía bem ao candidato utilizar a própria residência para distribuir dinheiro, tecidos, alimentos, colchões, sacos de cimento e um verdadeiro arsenal de favores eleitoreiros, então casas de cabos eleitorais eram utilizadas com tal finalidade. E assim, sempre pela porta dos fundos, às escondidas, verdadeiras filas se formavam para o recebimento do quinhão pelo voto negociado. E assim a madrugada inteira, numa gastança incessante para evitar as surpresas das urnas.
Os candidatos tinham razão em temer a leitura das urnas. De inocente elas não tinham nada, pois previamente violadas, já chegando buchudas, prenhes aos locais de votação. Dela se fazia uso e desuso segundo a conveniência das forças políticas municipais e estaduais. Ora, era do conhecimento de todos que elas faziam verdadeiros milagres e transformavam derrotados em vitoriosos num passe de mágica. Não raro que fossem gulosas demais e acabassem vomitando mais votos que os eleitores da seção. E durante a contagem manual eram comuns as práticas ardilosas da transferência de votos de um para outro candidato.
Mas haveria de se dizer que havia a justiça eleitoral para combater tais práticas. Sim, mas o poder da justiça interiorana era sempre de hierarquia inferior ao poder de mando e comando dos coronéis da política e dos poderosos. E comuns eram os casos de apadrinhamento e proteção escancarada da lei a determinados candidatos. Em algumas situações, era a própria justiça eleitoral que retinha o título de eleitores de determinado pleiteante. Era ela também que tudo permitia a uns e tudo proibia a outros. Era ela que também inventava a prática de ilícito eleitoral para prender o opositor e deixar o caminho totalmente livre para o protegido do rei.
Certa feita, o sertanejo Tefôncio, também conhecido por Teté Boca de Urna, resolveu, a mando do Coronel Licurguino, distribuir dinheiro, óculos e dentaduras na fila de votação. Ao tomar conhecimento da prática, o juiz eleitoral logo expediu ordem de prisão. Mas contra todo aquele que dissesse que aquele gesto bondoso e humanitário era ilegal.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com 

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