SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



terça-feira, 7 de outubro de 2014

Na Ponte do Imperador

Rangel Alves da Costa*


As águas avançam, chegam e batem quase que silenciosas nas bases de sustentação. As estruturas de cimento armado apresentam-se como que enferrujadas, corroídas pelo tempo e pelo avanço e recuo das águas. Parece que a maresia também tenta destruir aqueles beirais, ainda que seja de água doce aquele leito. Ali o antigo Cotinguiba, hoje Rio Sergipe, e também ali a velha ponte, o famoso atracadouro que um dia recebeu o imperador e sua comitiva. O ano era 1860.
Construída em madeira de lei, mais tarde recebendo estruturas metálicas e hoje toda sustentada e mantida em cimento armado, parece mais um velho e solitário galpão abandonado. Mas ainda é possível avistar por ali, pisando nos tapetes importados estendidos para os seus solados, o imperador e seu cortejo luso-brasileiro. Os vultos desaparecem e surgem outros vultos. Não há mais luxo ou requinte, fogos e paparicagens, eis que após o anoitecer o império ali existente é dos abandonados, dos meninos de rua, dos viciados e errantes. O ano é 2014, num dia qualquer da semana. Ou todos os dias.
A comitiva não chega a vapor, cortando as águas, mas ultrapassando o portal que limita a cidade. Também não vai até ali para apreciar a paisagem noturna, avistar as luzes na outra margem, buscar inspiração para escrever poesia ou mesmo namorar enquanto se deleita com a luz da lua se derramando nas águas turvas e malcheirosas. Não conhece o que seja poesia escrita, senão o verso vivenciado na carne; não conhece inspiração, senão o que o momento desperta para motivar o viver. Parecendo criaturas surgidas das obras de Jorge Amado, se tornaram imperadores noturnos naquela ponte erguida para a realeza, mas que a cidade abdicou de devidamente conservá-la e proporcioná-la uma digna destinação.
As águas não têm culpa de nada, muito menos das imundícies nelas cotidianamente despejadas. Avançam e recuam, e a cada avanço um cheiro fétido subindo no ar. Cheiro de marina, forte, ácido, mas aquelas narinas não conseguem mais discernir a fetidez ou o perfume. É noite e não há gaivotas voando ao redor nem outros pássaros beiradeiros. Os peixes fugiram para não ser sufocados. Mas eles chegam e permanecem ali, quietos, silenciosos, rentes às muretas, derreados pelos degraus, espalhados pelos cantos nus. Em meio às drogas, cochilos profundos e pesadelos, vivenciam seu reino noturno. Ali um imperador em cada um, soberano de seu destino, cujo reino ruído só falta desabar.
Os imperadores da noite se jogam extasiados nas suas camas de papelão ou folhas de jornal. Um tentar adormecer bem em cima de uma notícia antiga de jornal, sequer imaginando que a reportagem trata exatamente sobre o seu império, ou a Ponte do Imperador. Adormece por cima da história e turvamente se vê sonhando com aquelas pessoas chegando numa grande embarcação e subindo por aqueles degraus.
Com efeito, foi ali que a embarcação trazendo a ilustre figura atracou e de onde o visitante, após olhar de lado a outro das águas, sorriu em direção aos coqueirais do outro lado e fechou o semblante quando olhou para a povoação que o esperava, para depois pronunciar: Na terra dos cajueiros e papagaios, soa triste imaginar que logo mais só restarão alguns daqueles coqueirais pelos lados da barra.
Como dito, o ano era 1860. Antes disso, o então presidente da província, Dr. Manuel da Cunha Galvão, preocupado com a visita do Imperador Dom Pedro II e sua esposa, a Imperatriz Dona Tereza Cristina, bem como de vultosa comitiva, ordenou a construção de um atracadouro de madeira que suportasse a ancoragem da embarcação e recebesse com segurança a comitiva imperial. Ademais, o local escolhido ficava a poucos passos e defronte ao palácio provincial na atual Praça Fausto Cardoso.
Construção temporária para aquela importantíssima finalidade, mas bastou que a realeza colocasse ali seu solado para que o atracadouro passasse para os livros como marco da visita, mais tarde recebesse estrutura de cimento e ferro, diversas vezes revitalizada e utilizada com diversos objetivos, até chegar à feição de hoje. E tida e reconhecida como ponte, a Ponte do Imperador.
Depois que pôs os pés no tapete por cima da madeira às margens do Rio Cotinguiba, a 11 de janeiro de 1860, a comitiva imperial deu início a uma visita de dez dias, percorrendo cidades interioranas, escolas, inaugurando obras. E muito tinha a inaugurar, eis que a cidade vencendo os mangues através de aterros para se transformar num verdadeiro canteiro de obras.  Desse modo, a cada passo o imperador tinha de descerrar uma placa e ouvir os foguetórios. Assim aconteceu na inauguração da Capela do São Salvador, construída como primeira matriz da província.
A cidade cresceu, a ponte suportou todas as intempéries para se manter viva naquela localidade, só que sem ser preservada como deveria. Não faz muito tempo que tentaram instalar ali um museu, mas restou apenas a história da própria ponte e as suas estruturas corroídas e carcomidas. E talvez tenha sido por isso que o imperador permite que outros donos agora se arvorem daquele reino. E ele mesmo surge entristecido nas noites para contemplar aqueles servos do abandono.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

PERSEVERÂNÇA disse...

Feliz terça-feira!
Excelente matéria.
Por aqui em SP a falta de chuva já estou me preparando para o racionamento, por descuido dos governantes que não observaram a baixa das represas...
Grande abraço, te espero no Perseverança.
Nicinha