Rangel
Alves da Costa*
As águas avançam, chegam e batem quase que
silenciosas nas bases de sustentação. As estruturas de cimento armado
apresentam-se como que enferrujadas, corroídas pelo tempo e pelo avanço e recuo
das águas. Parece que a maresia também tenta destruir aqueles beirais, ainda que
seja de água doce aquele leito. Ali o antigo Cotinguiba, hoje Rio Sergipe, e
também ali a velha ponte, o famoso atracadouro que um dia recebeu o imperador e
sua comitiva. O ano era 1860.
Construída em madeira de lei, mais tarde
recebendo estruturas metálicas e hoje toda sustentada e mantida em cimento
armado, parece mais um velho e solitário galpão abandonado. Mas ainda é
possível avistar por ali, pisando nos tapetes importados estendidos para os
seus solados, o imperador e seu cortejo luso-brasileiro. Os vultos desaparecem
e surgem outros vultos. Não há mais luxo ou requinte, fogos e paparicagens, eis
que após o anoitecer o império ali existente é dos abandonados, dos meninos de
rua, dos viciados e errantes. O ano é 2014, num dia qualquer da semana. Ou todos
os dias.
A comitiva não chega a vapor, cortando as
águas, mas ultrapassando o portal que limita a cidade. Também não vai até ali
para apreciar a paisagem noturna, avistar as luzes na outra margem, buscar
inspiração para escrever poesia ou mesmo namorar enquanto se deleita com a luz
da lua se derramando nas águas turvas e malcheirosas. Não conhece o que seja
poesia escrita, senão o verso vivenciado na carne; não conhece inspiração,
senão o que o momento desperta para motivar o viver. Parecendo criaturas surgidas
das obras de Jorge Amado, se tornaram imperadores noturnos naquela ponte
erguida para a realeza, mas que a cidade abdicou de devidamente conservá-la e
proporcioná-la uma digna destinação.
As
águas não têm culpa de nada, muito menos das imundícies nelas cotidianamente
despejadas. Avançam e recuam, e a cada avanço um cheiro fétido subindo no ar.
Cheiro de marina, forte, ácido, mas aquelas narinas não conseguem mais
discernir a fetidez ou o perfume. É noite e não há gaivotas voando ao redor nem
outros pássaros beiradeiros. Os peixes fugiram para não ser sufocados. Mas eles
chegam e permanecem ali, quietos, silenciosos, rentes às muretas, derreados
pelos degraus, espalhados pelos cantos nus. Em meio às drogas, cochilos
profundos e pesadelos, vivenciam seu reino noturno. Ali um imperador em cada
um, soberano de seu destino, cujo reino ruído só falta desabar.
Os imperadores da noite se jogam extasiados
nas suas camas de papelão ou folhas de jornal. Um tentar adormecer bem em cima
de uma notícia antiga de jornal, sequer imaginando que a reportagem trata
exatamente sobre o seu império, ou a Ponte do Imperador. Adormece por cima da
história e turvamente se vê sonhando com aquelas pessoas chegando numa grande
embarcação e subindo por aqueles degraus.
Com efeito, foi ali que a embarcação trazendo
a ilustre figura atracou e de onde o visitante, após olhar de lado a outro das
águas, sorriu em direção aos coqueirais do outro lado e fechou o semblante
quando olhou para a povoação que o esperava, para depois pronunciar: Na terra
dos cajueiros e papagaios, soa triste imaginar que logo mais só restarão alguns
daqueles coqueirais pelos lados da barra.
Como dito, o ano era 1860. Antes disso, o
então presidente da província, Dr. Manuel da Cunha Galvão, preocupado com a visita
do Imperador Dom Pedro II e sua esposa, a Imperatriz Dona Tereza Cristina, bem
como de vultosa comitiva, ordenou a construção de um atracadouro de madeira que
suportasse a ancoragem da embarcação e recebesse com segurança a comitiva
imperial. Ademais, o local escolhido ficava a poucos passos e defronte ao
palácio provincial na atual Praça Fausto Cardoso.
Construção temporária para aquela
importantíssima finalidade, mas bastou que a realeza colocasse ali seu solado
para que o atracadouro passasse para os livros como marco da visita, mais tarde
recebesse estrutura de cimento e ferro, diversas vezes revitalizada e utilizada
com diversos objetivos, até chegar à feição de hoje. E tida e reconhecida como
ponte, a Ponte do Imperador.
Depois que pôs os pés no tapete por cima da
madeira às margens do Rio Cotinguiba, a 11 de janeiro de 1860, a comitiva
imperial deu início a uma visita de dez dias, percorrendo cidades interioranas,
escolas, inaugurando obras. E muito tinha a inaugurar, eis que a cidade
vencendo os mangues através de aterros para se transformar num verdadeiro
canteiro de obras. Desse modo, a cada
passo o imperador tinha de descerrar uma placa e ouvir os foguetórios. Assim
aconteceu na inauguração da Capela do São Salvador, construída como primeira matriz
da província.
A cidade cresceu, a ponte suportou todas as
intempéries para se manter viva naquela localidade, só que sem ser preservada
como deveria. Não faz muito tempo que tentaram instalar ali um museu, mas
restou apenas a história da própria ponte e as suas estruturas corroídas e
carcomidas. E talvez tenha sido por isso que o imperador permite que outros
donos agora se arvorem daquele reino. E ele mesmo surge entristecido nas noites
para contemplar aqueles servos do abandono.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Feliz terça-feira!
Excelente matéria.
Por aqui em SP a falta de chuva já estou me preparando para o racionamento, por descuido dos governantes que não observaram a baixa das represas...
Grande abraço, te espero no Perseverança.
Nicinha
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