SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 23 de outubro de 2014

O MENINO E O PÁSSARO DA NOITE


Rangel Alves da Costa*


Era uma vez... (“Oh! Que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos trazem mais...”, citando Casimiro de Abreu). Toda história linda e um dia lida assim começava. Era uma vez...
Era uma vez uma família pobre, muito pobre, moradora numa região distante e sobrevivendo da sorte da terra. E quando o sol insistia em alongar-se no dia e a estiagem espantava o verde e a esperança, então tudo se transformava num só sofrimento.
E uma realidade assim de tristeza e sofrimento logo se abateu pelas redondezas. Dia e mais dia, mês e mais mês, entrando e saindo ano, e nada da chuvarada chegar. Não havia mais plantação sobre a terra, eis que tudo esturricado e cinzento. O pote quase sem água, a panela sempre vazia.
A família era pequena, pois apenas o pai, a mãe e um menino. Ainda assim não havia mais nada que servisse de alimento aos três. Os pais sofriam, mas principalmente pelo temor de não ter mais o que dar ao menino quando sentisse fome.
Não havia mais galinha no quintal nem qualquer criação no pasto. Faltava ovo e a carne esbranquiçada da palma. Também não havia mais pedaço de pão nem resto de qualquer coisa. A caça do mato, como o preá e a codorna, estava cada vez mais difícil de ser encontrada. A seca havia espantado tudo.
Ainda não tinha a consciência e a sabedoria de um adolescente, mas o menino já compreendia a triste realidade. E por isso mesmo, ainda que com fome, tudo fazia para não demonstrar sua vontade de comer qualquer coisa. Suportava a fome em silêncio. Também percebia o sofrimento dos pais diante do fogo apagado e da panela vazia.
Passava o tempo conversando com um passarinho que mantinha numa gaiola. Aquele era o seu único amigo e confidente. Entristecia por mantê-lo ali engaiolado, tinha vontade de soltá-lo, de deixá-lo novamente em liberdade, mas dois pensamentos o faziam recuar em abrir a porta.
O primeiro dizia respeito à solidão que sentiria sem aquele amigo em tempos tão difíceis. Muitas vezes chegava perto da gaiola para dizer que sentia fome, mas suportaria até que encontrasse alguma coisa para enganar a barriga. E o segundo era a certeza de que seu amiguinho iria parar dentro de alguma panela ou em cima das brasas de um fogão. Ora, sem qualquer caça na região, logo seria misturado à farinha seca e mastigado.
Mas um fato inusitado deixou o menino ainda mais triste e preocupado. Mesmo não estando entre eles, acabou ouvindo seu pai confessar algo estarrecedor à sua mãe. E ouviu que diante da situação não havia outro jeito senão matar o passarinho, assar na brasa e dividir aquele quase nada entre os três. Mas teria de dizer ao menino que o seu amiguinho havia simplesmente fugido.
Tais palavras acabaram provocando uma profunda aflição. Tudo, menos matar seu passarinho. Seria o fim do mundo jogar no braseiro um toquinho magricela que nem gosto daria na boca. Ademais, estava ali sem importunar ninguém, cantando de vez em quando, alegrando o padecimento da família. Ademais, era seu passarinho, seu amiguinho, e não deixaria de jeito nenhum que isso acontecesse.
Mas fazer o que? Pensou, pensou e pensou. Mas não tinha muito tempo para pensar. Tinha de encontrar uma solução imediata e antes da chegada da noite, pois quando adormecesse corria o risco de acordar sem o seu fiel companheiro. E então, já ao entardecer, resolveu abrir a porta da gaiola.
Mas não ali na presença dos pais, pois poderiam se aproveitar da situação e alcançá-lo. Aproveitou um instante de distração e desceu a gaiola. Depois se encaminhou rapidamente para a mataria ao redor e começou a dar adeus ao amigo, numa despedida comovente e dolorosa.
“Vá, voe para bem longe e o mais alto que puder. Mesmo que ainda esteja fraco pra voar apressado, tudo faça para se afastar daqui o quanto puder. Vai correr muito perigo se continuar por aqui, pousando nos pés de pau adiante. Tem gente caçando cobra pra comer e muito mais um passarinho bonito como você. E Deus me livre de saber que meu amiguinho foi acertado por uma baleadeira ou espingarda de chumbo. Vá que quando a situação melhorar juro que vou entrar nessa mataria e lhe procurar. Agora vá amiguinho. Adeus!”.
As mãos pequeninas se levantaram até o alto e se abriram para que o pássaro alcançasse os espaços. Desacostumado à liberdade, ao voo, se esforçava para bater as asas e alcançar qualquer galho. E assim de um galho a outro, até sumir, ao menos da visão do menino. Mas o pássaro, entre folhagens secas, fixava o olhar no amiguinho e chorava por dentro. E também por fora. Mas dizem que lágrimas de passarinho são invisíveis.
Ao retornar entristecido, cabisbaixo, silencioso, o menino encontrou seu pai do lado de fora do casebre. E a primeira coisa que ele fez foi perguntar pelo passarinho. O filho respondeu que havia fugido e que estava no mato tentando encontrá-lo novamente, mas ele parecia ter voado para muito longe.
Pensativo, o pai nada mais perguntou. Naquela noite o menino não conseguiu adormecer de jeito nenhum. Silenciosamente chorando, não pensava noutra coisa senão no seu passarinho. Tinha um pressentimento ruim, uma quase certeza que ele ainda estava por perto e correndo muito perigo.
Logo cedinho o menino correu na direção da mataria, nos arredores de onde tinha soltado o amiguinho. Chamou, imitou seu canto, olhou de canto a outro, e nada de avistá-lo. Retornou esperançoso de que ele tivesse conseguido voar para longe dali. Mais tarde olhou se o fogão de lenha estava aceso e com alguma coisa por cima, porém nada avistou.
Quando a noite chegou, mesmo faminto, logo começou a cochilar e também sonhar. Sonhou que o seu passarinho estava ali na sua janela. Assustado, abriu os olhos e olhou naquela direção. Avistou apenas um vulto. Era ele, não tinha dúvida. E foi lentamente se aproximando. E também foi a primeira vez que ouviu um pássaro falar:
“Adeus amiguinho. Você me libertou para me proteger, pois não queria que eu fosse morto para servir de comida. E nosso acordo foi para eu retornar um dia e cantar novamente ao seu lado. Mas alguém me alcançou sem que eu pudesse evitar. Por isso não existo mais, já morri. Quer dizer, me mataram como ilusão de matar a fome. O passarinho que fui já não sou mais, apenas uma alma que se despede de um verdadeiro amigo. Adeus amiguinho, mas ouça, ainda que não me aviste mais...”.
E o vulto sumiu no meio da noite. Mas o menino continuou ouvindo um canto triste de pássaro. E ainda hoje, muitos anos depois, ainda ouve o amigo cantar no meio da noite.


Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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