SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 2 de outubro de 2014

CAFÉ DE BULE, CUSCUZ E SERTÃO


Rangel Alves da Costa*


Não há como não sentir saudade do meu sertão. Aqui na cidade feia, desumana e cruel, no aperreio dos dias, cada vez mais me sinto jogado numa paisagem que não é a minha. Sou sertanejo, sou de lá, das veredas matutas, do esturricamento e da seca, do pingo d’água e da esperança infinita. Sou calango, lagartixa, preá, cipó reimoso, espinho de quipá e flor de mandacaru.
Sou daquele sol e daquela lua, daquele povo e daquela rua. Sou da catingueira e do xiquexique, daquela valentia de honra e daquele gesto abençoado de acolhimento. Sou daquela fé imensa, daquela religiosidade infinita. E também daquela ventania d’além que chega revirando as roupas no varal e assanhando o cabelo da linda sertanejinha. Ali a mulher bíblica, a mulher força, a mulher singeleza: a mulher vestida de sol! E ali ainda o homem bíblico: aquele que vence desertos para fundar o reino da sobrevivência!
Que saudade danada, seu moço. Aqui é apenas um lugar, enquanto lá era vida, era viver. Abro a janela do amanhecer e nada de canto passarinheiro. Ando pelas ruas e não ouço nenhum bom dia ou boa tarde. Remédio de farmácia e não de quintal, fruta sem a doçura e o gosto da terra. Ao entardecer então o sofrimento se alastra. E de repente me vem a certeza que é impossível viver sem o cheiro do café torrado ainda fervendo no bule. E também do bolo de leite e do proseado às sombras do pé de pau.
Falei em café no bule, bolo de leite e proseado, mas poderia ter citado muito mais. Dizer de algo assim como galinha gorda de capoeira, queijo de coalho de fazenda, coalhada, doce de leite, milho assado, arroz doce, mungunzá, carne de bode e muito mais. Feijão de corda, baião de dois, invenções de cozinha matuta. E assim porque o meu sertão é repleto de sabores, de gostos, de gostosuras e muito mais que o apetite suportar.
O cuscuz de milho ralado é outra coisa inesquecível. Sei que dava um trabalho danado escolher as espigas de milho no ponto para serem raladas, limpá-las para deixar sem cabelos, e depois lançar as mãos no ofício do vai e vem, sempre correndo risco de ralar os dedos também. Em seguida, quando a bacia já estivesse cheia do farelo amarelado, úmido e pegajoso, despejar tudo no enorme cuscuzeiro. O fogão de lenha já esperando, bastava cobrir o milho com um pano limpo e esperar a água ferver embaixo do cuscuzeiro. E de repente, após o pano começar a suar, eis que o vapor cheiroso, perfumado de milho, começava a se alastrar pela casa e arredores.
Cuscuz sertanejo de milho ralado é comida rápida. Quando o vapor se alastra já é sinal de estar no ponto. Daí bastava colocar na mesa e olhar ao redor as outras gostosuras para o necessário acompanhamento. Tem gente que come ele puro só com o café, mas a maioria prefere apreciá-lo com ovos de capoeira, qualquer pedaço de carne, tripa, toucinho na brasa ou qualquer outra coisa que esteja à disposição. Conheci um sujeito que não conseguiu levantar após se entreter com um cuscuz inteiro à sua frente. Foi preciso iniciar a digestão ali mesmo. Só que cismou de experimentar também um prato de coalhada, e não demorou muito para implorar que alguém lhe abanasse pelo amor de Deus.
Dona Lídia preparava o mais famoso café da região. Ao fim da tarde e a cidade inteira se enchia daquele cheiro inconfundível do café fervendo. Nunca negou um bocadinho a ninguém, mas certamente tinha que levar a chaleira muitas vezes ao fogão de lenha, pois não eram poucos os que iam entrando casa adentro implorando pela sua meia xícara. E depois retornar à praça para sentir a noite encantadora chegar. E logo a lua, a maior de todas, a mais bela de todas, enchendo os olhos de prazer e relembranças.
Logo as calçadas eram entregues somente aos tamboretes e às cadeiras de balanço que por ali continuavam esperando o retorno dos seus donos. Dentro das casas a hora do café da noite, da sobra de comida do meio dia, da macaxeira, do inhame, do cuscuz. Ou do pão com manteiga. Ou apenas do pão. Ou também de nada, eis que muito jantar sertanejo é apenas a esperança de ter qualquer alimento amanhã.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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