*Rangel Alves da
Costa
A urna
eleitoral causa mais medo ao candidato que mesmo o opositor. Para muitos, o baú
das riquezas, para outros a caixa de Pandora, de onde sai o inimaginável para
lhe atormentar. Mas a verdade é que não há um só pleiteante a cargo eletivo que
não estremeça todo só em pensar no que aquele apetrecho lhe aguarda. Mesmo o
voto hoje sendo depositado eletronicamente, sem necessidade de cédula
eleitoral, a aflição é a mesma: o que vai sair dali de dentro?
Realmente
uma caixa de segredos, de mistérios, de surpresas arrepiantes. Há candidato que
até desconfia de sua lisura, de sua honestidade, vez que passa pela fila ao
redor da seção e dá como certos vinte, trinta votos, mas quando sai o resultado
tudo parece ter sumido. Nunca imagina que aqueles eleitores não eram muito
confiáveis, mas apenas que a danada transferiu seu sufragamento a outro. “Como
é que Titoca, um analfabeto de pai e mãe, teve mais de trinta votos e eu só
três? Deve ser safadeza da urna, só pode ser!”.
Já
Orelino, naqueles tempos de voto de cabresto e urnas mais que viciadas, pediu a
seus eleitores que levassem no bolso uma pontinha de carvão e marcassem o papel
de votação ainda na cabine, antes de colocá-lo na urna. Achava que agindo assim
não haveria como ser enganado na hora da apuração. Só que diante das cédulas
sujas o mesário, a mando do rábula a serviço do filho candidato do coronel,
resolveu não só anular como reverter todos os votos para a coligação
coronelista. Mesmo com todo carvão, se tem como uma das eleições mais limpas
até hoje de Mundaréu.
Eleições
têm dessas coisas mesmo. Desde os tempos antigos aos mais recentes. Quando tudo
ainda era na caneta, marcando “x” no candidato majoritário ou rabiscando o
número do pleiteante proporcional, mesmo muita gente letrada saía da cabine com
voto virgem. O nervosismo era tanto que a mão não conseguia sequer segurar a
caneta. Mas também o medo. Acaso tencionasse votar contra o poder enraizado no
cabresto, era como se imaginasse estar sendo olhado, vigiado e ameaçado. Tinha
gente até que jurava avistar um cano de arma pelos cantos da cabine.
Quem não
tinha medo de jeito nenhum era o Coronel Astério Carnaúba. Tremia todo quando
ouvia falar de alma do outro mundo, mas da urna nada temia. E lá tinha suas
razões. Aliás, se dizia o seu maior
amigo, num apego incondicional a quem tanto lhe servia. Com a urna mantinha
segredo quem ninguém ousava sequer mencionar, ainda que todos imaginassem do
que se tratava. Tinha a urna como faustoso curral onde a boiada de eleitores se
enjaulava para manter seu poder.
Certa
feita, cismando que a urna devia ser respeitada como pessoa fosse, mandou
encher a barriga de cada uma no meio da noite, na véspera da eleição. Quando o
dia amanheceu e elas foram levadas às seções eleitorais, já levavam por dentro
um enxame de cédulas marcadas. E quando, na contagem final, acontecia de ter
mais votos que o número de eleitores, então o poderoso Astério dizia solene:
“Ainda bem que não deu dor de barriga”. E a eleição estava garantida, sem poder
algum de contestação.
Como
contestar, se a lei eleitoral da época comia na mão do poder? Dizia até o que o
juiz era o maior cabo eleitoral do velho Astério, vez que permitia uma
verdadeira farra na distribuição de alimentos, remédios e dinheiro até mesmo no
dia da eleição. Também consentia que capangas do coronel andejassem ao redor
das seções com armas à mostra e olhares ameaçadores. E era comum, às vésperas
das eleições, que opositores do velho fossem presos em flagrante. Qual o
flagrante? Falar mal do homem.
A verdade
é que o poder da urna se torna imperioso em qualquer eleição. É temida, amada,
odiada, e até negada. Mesmo nos dias atuais, muita gente há que não confia no
aparato tecnológico colocado à disposição. De vez em quando surge algum boato
de urna eletrônica passível de ser adulterada, e até de situações onde a
informática foi tendenciosa. Que se diga com relação às velhas urnas de madeira
e pano grosso, de bocas abertas e ávidas por manipulação. Mas não era outro o
agente manipulador senão as forças locais de poder, os mandos coronelistas e as
influências governamentais.
O que
aconteceu nas duas primeiras eleições de Poço Redondo, lá pelos anos 50,
exemplifica bem a força manipuladora do poder. Na primeira, o candidato Zé de
Julião, o ex-cangaceiro Cajazeira do bando de Lampião, teve mais votos que o
adversário governista. Não aceitando a derrota, recontaram os votos até que o
candidato da situação tivesse um voto a mais. A cada contagem, um voto de Zé de
Julião sumia. Já na segunda, a fraude perpetrada foi ainda maior. Os títulos só
chegaram aos eleitores do candidato governista. Ultrajado mais uma vez, no dia
da votação o ex-cangaceiro, após reunir mais de cem cavaleiros, simplesmente
invadiu as seções e levou as urnas.
Assim
antigamente. E hoje, seria muito diferente?
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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