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domingo, 2 de outubro de 2016

QUEM TEM MEDO DE URNA?


*Rangel Alves da Costa


A urna eleitoral causa mais medo ao candidato que mesmo o opositor. Para muitos, o baú das riquezas, para outros a caixa de Pandora, de onde sai o inimaginável para lhe atormentar. Mas a verdade é que não há um só pleiteante a cargo eletivo que não estremeça todo só em pensar no que aquele apetrecho lhe aguarda. Mesmo o voto hoje sendo depositado eletronicamente, sem necessidade de cédula eleitoral, a aflição é a mesma: o que vai sair dali de dentro?
Realmente uma caixa de segredos, de mistérios, de surpresas arrepiantes. Há candidato que até desconfia de sua lisura, de sua honestidade, vez que passa pela fila ao redor da seção e dá como certos vinte, trinta votos, mas quando sai o resultado tudo parece ter sumido. Nunca imagina que aqueles eleitores não eram muito confiáveis, mas apenas que a danada transferiu seu sufragamento a outro. “Como é que Titoca, um analfabeto de pai e mãe, teve mais de trinta votos e eu só três? Deve ser safadeza da urna, só pode ser!”.
Já Orelino, naqueles tempos de voto de cabresto e urnas mais que viciadas, pediu a seus eleitores que levassem no bolso uma pontinha de carvão e marcassem o papel de votação ainda na cabine, antes de colocá-lo na urna. Achava que agindo assim não haveria como ser enganado na hora da apuração. Só que diante das cédulas sujas o mesário, a mando do rábula a serviço do filho candidato do coronel, resolveu não só anular como reverter todos os votos para a coligação coronelista. Mesmo com todo carvão, se tem como uma das eleições mais limpas até hoje de Mundaréu.
Eleições têm dessas coisas mesmo. Desde os tempos antigos aos mais recentes. Quando tudo ainda era na caneta, marcando “x” no candidato majoritário ou rabiscando o número do pleiteante proporcional, mesmo muita gente letrada saía da cabine com voto virgem. O nervosismo era tanto que a mão não conseguia sequer segurar a caneta. Mas também o medo. Acaso tencionasse votar contra o poder enraizado no cabresto, era como se imaginasse estar sendo olhado, vigiado e ameaçado. Tinha gente até que jurava avistar um cano de arma pelos cantos da cabine.
Quem não tinha medo de jeito nenhum era o Coronel Astério Carnaúba. Tremia todo quando ouvia falar de alma do outro mundo, mas da urna nada temia. E lá tinha suas razões.  Aliás, se dizia o seu maior amigo, num apego incondicional a quem tanto lhe servia. Com a urna mantinha segredo quem ninguém ousava sequer mencionar, ainda que todos imaginassem do que se tratava. Tinha a urna como faustoso curral onde a boiada de eleitores se enjaulava para manter seu poder.
Certa feita, cismando que a urna devia ser respeitada como pessoa fosse, mandou encher a barriga de cada uma no meio da noite, na véspera da eleição. Quando o dia amanheceu e elas foram levadas às seções eleitorais, já levavam por dentro um enxame de cédulas marcadas. E quando, na contagem final, acontecia de ter mais votos que o número de eleitores, então o poderoso Astério dizia solene: “Ainda bem que não deu dor de barriga”. E a eleição estava garantida, sem poder algum de contestação.
Como contestar, se a lei eleitoral da época comia na mão do poder? Dizia até o que o juiz era o maior cabo eleitoral do velho Astério, vez que permitia uma verdadeira farra na distribuição de alimentos, remédios e dinheiro até mesmo no dia da eleição. Também consentia que capangas do coronel andejassem ao redor das seções com armas à mostra e olhares ameaçadores. E era comum, às vésperas das eleições, que opositores do velho fossem presos em flagrante. Qual o flagrante? Falar mal do homem.
A verdade é que o poder da urna se torna imperioso em qualquer eleição. É temida, amada, odiada, e até negada. Mesmo nos dias atuais, muita gente há que não confia no aparato tecnológico colocado à disposição. De vez em quando surge algum boato de urna eletrônica passível de ser adulterada, e até de situações onde a informática foi tendenciosa. Que se diga com relação às velhas urnas de madeira e pano grosso, de bocas abertas e ávidas por manipulação. Mas não era outro o agente manipulador senão as forças locais de poder, os mandos coronelistas e as influências governamentais.
O que aconteceu nas duas primeiras eleições de Poço Redondo, lá pelos anos 50, exemplifica bem a força manipuladora do poder. Na primeira, o candidato Zé de Julião, o ex-cangaceiro Cajazeira do bando de Lampião, teve mais votos que o adversário governista. Não aceitando a derrota, recontaram os votos até que o candidato da situação tivesse um voto a mais. A cada contagem, um voto de Zé de Julião sumia. Já na segunda, a fraude perpetrada foi ainda maior. Os títulos só chegaram aos eleitores do candidato governista. Ultrajado mais uma vez, no dia da votação o ex-cangaceiro, após reunir mais de cem cavaleiros, simplesmente invadiu as seções e levou as urnas.
Assim antigamente. E hoje, seria muito diferente?


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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