*Rangel Alves da
Costa
Depois da
porta do fundo, um mundo. E o mundo mais verdadeiro que podia existir. Cheio de
presente e passado, de pensamentos e relembranças, de tempo e seus varais. Por
isso mesmo que vovó gostava tanto do seu quintal. Quase ainda na ferrugem da
madrugada, após o galo se empertigar e abrir suas asas para anunciar o
alvorecer, a velha porta lentamente começava a ranger. Era vovó forçando o
ferrolho e arrastando a madeira para depois colocar o primeiro pé no seu chão
tão sagrado.
Um quintal
de verdade, de feição antiga, como os que raramente são encontrados hoje em dia
nas lonjuras interioranas. Com pouco cercado ao redor, tendo o fundo já
adentrando na mataria que se alonga adiante, mas delimitado na sua existência
própria: ali o cercadinho de planta medicinal, o velho pilão tão usado noutros
idos, o poleiro, o tronco grosso deitado e que servia de assento, o varal
fazendo curva de lado a lado, uma goiabeira, uma mangueira, um mamoeiro bonito.
E muito mais.
E muito
mais por que quintal habitado pelo que a mente, já um tanto caduca da vovó,
queria trazer à realidade. Daí que qualquer um estranharia quando ela, após
ultrapassar a soleira, dava um bom dia como se estivesse falando com alguém.
Não falava com o galo, a galinha ou os calangos, nem com que as plantas ou as
frutas acaso penduradas nos galhos, mas com pessoas. E não só falava como,
durante quase o dia inteiro, presenciava fatos e situações somente possíveis na
boca do povo ou nos livros de história.
“Bom dia,
meu santo Padim Pade Ciço. Desculpe não poder me ajoelhar pra beijar sua mão, é
que ando cheia de dor por todo lugar. Foi bom que tivesse vindo hoje mesmo,
atendendo meu pedido no oratório. Meu Padim sabe que o povo do sertão confia
muito no senhor, que tudo faz pela sua proteção, então chegou a hora de
perguntar a esse mesmo povo o porquê de agora viver tão distanciado da igreja,
da missa, da reza, da novena, da procissão. Aquele sertanejo de fé parece ter
amiudado de devoção. Até mesmo ao seu pedestal no Juazeiro, a maioria que vai é
pra passear e fazer comércio, e depois não traz sequer uma fitinha santa ou uma
rapadura abençoada. Depois reclama que a vida tá ruim, que tá tudo difícil. E
não podia ser diferente, meu santo Padim. Um povo sem fé é povo que não
acredita sequer na força que tem”.
Dizia isso
enquanto enchia cuia de água para molhar a cidreira, a hortelã, o boldo. Todo
santo dia no mesmo ofício, no cuidado de sua farmácia de canto de quintal, na
recolha dos ovos de umas poucas galinhas, na sorte de encontrar fruta caída sem
estar imprestável ao uso. Sorte quando a meninada não se adiantava e levava
tudo, ainda de cima do pé. Não se importava não, pois sabia do sabor sem igual
daquelas goiabas, mangas e mamões. Só ficava em tempo de endoidar quando dava
por falta de galinha. E mais ainda quando mais tarde sentia o cheiro da penosa
nas panelas da vizinhança. Mais de vez dormiu do lado de fora, à espreita de
quem chegasse para jogar milho e depois afaná-la, mas logo sentia falta da
presença do falecido ao lado do colchão da cama. Altas horas da noite ele
aparecia e ali se deitava.
Também
conversava com Lampião, e muito, num proseado que mais parecia uma
ex-cangaceira retomando as lidas nas caatingas e carrascais. “Pois é Capitão,
bem sei que não são poucos os que sentem sua falta nos dias de agora. Outro
dia, compadre Clemente disse que não podia haver um presidente melhor que o
senhor. Homem de coragem, de palavra, que botava pra correr no mosquetão essa
bandidagem da política. Já Torquato diz e repete que sente sua falta como
prefeito, como delegado, como autoridade de tudo. E tem razão, pois tudo aqui
seria diferente tendo de frente o nome de Lampião. Bastava o nome Virgulino
Lampião e tudo mudava de jeito. O que era torto se ajeitava, o que era ladroeira
virava carniça. Eu mesma ia ser sua defensora, como ainda sou. Não de arma na
mão, mas de rosário de conta no dedo, dia e noite rezando pra que não lhe
acontecesse qualquer mal”.
Conversava
e mais conversava enquanto ajeitava uma coisa e outra. Levantava um pau caído
num canto de cerca, passava a vassoura debaixo do poleiro, entupia de terra o
formigueiro. De vez em quanto dizia: “Eu sei que tá aí Conselheiro, com seu
cajado, seu chinelo de pé e sua barba de fim de mundo. O purrão tá cheio e é
pra tomar banho. Quem já se viu um homem santo não gostar de tomar banho? Desse
jeito, parecendo um bicho, não vai ter ninguém que se anime a ir até Canudos”.
Ou ainda: “Leocádio, meu defunto esposo, agora não. Não adianta me chamar que
não vou pra onde você tá. Só vou quando Deus quiser”.
O dia
passava assim, com vovô ali no quintal, com seus devaneios e suas conversas sem
pé nem cabeça. Mas quando já perto da noite era diferente. Somente as saudades
nos olhos apertados, molhados de lágrimas. E quando a lua descia, então
chorava, chorava.
Escritor
Membro da Academia de Letras
de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
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