*Rangel Alves da
Costa
As cenas
já estão aterrorizantes. Os mais jovens certamente jamais haviam avistado algo
assim. Somente agora podem confirmar aqueles causos contados pelos mais velhos,
dando conta das secas medonhas e todo tipo de bicho, principalmente o gado,
caindo de magrez e fraqueza e logo se tornando comida de urubus, gaviões,
carcarás e outras aves carnicentas. O que parecia invencionice agora se mostra
em realidade espantosa: o bicho caindo ossudo e o bico carnicento devorando
seus restos.
Tudo
verdade no que os mais velhos diziam. O gado, já sem mugido ou berro, vai
suportando como pode, andando de lado a outro debaixo do sol, até o instante
que um tropeço de nada anuncie o seu fim. Em meio à sequidão, sem ninguém para
imediatamente levantar, quando a vaquinha de couro e osso cai não há mais o que
fazer. Sem força para se erguer, sem sombreado ou poça d’água adiante, sem cuia
de palma seca ou farelo gorgulhento, os seus dias estarão ali terminados.
E que sina
mais triste a do bicho em época de seca grande. Até a chuva lhe faz correr
perigo de morte. O que cairia de riba como salvação, de repente pode se
transformar em sua sentença de morte. E assim por que de tão fraco que está não
é todo bicho ossudo que suporta chuvarada forte, principalmente se a terra seca
logo se torna lamacenta. O peso da trovoada sobre os ossos e as dificuldades de
caminhar pelo fraquejamento, sempre provocam riscos de escorregões e de ter o
lamaçal como túmulo. Assim ocorre muito sertões adentro após as trovoadas que
caem pesadas. A fraqueza do gado é tanta que até caminhar se torna em
sacrifício. E tomba para morrer pela água.
Apenas
dois homens não conseguem levantar uma vaca caída pela trovoada. Dá um trabalho
danado e nem sempre com bom resultado. Além da lama dificultando o trabalho,
também a moleza do bicho já entregue ao seu fim. E mais: encontrar forças
suficientes para empurrar o animal sobre uma espécie de padiola de couro cru e
depois erguê-la com o animal em cima, colocando como trempe num canto de
curral. E nos dias seguintes, acaso o bicho se mostre mais reanimado, cuidar de
sua alimentação como se de uma pessoa enferma, dando praticamente na boca a
água, a comida, o remédio. O trabalho do dono somente é justificado pelo
profundo apego ao animal. Um caso de amor sertanejo.
Tudo isso
faz parte do mundo das secas e também das chuvas. Depois de anos e mais anos de
seca, as chuvaradas que caem chegam como soluções e também como problemas. O
gado que tanto sofre pela falta d’água nas fontes e nas plantas, também tenderá
a sofrer logo nas primeiras chuvas caídas. Sua fragilidade é tamanha que até
pode não suportar pingo grosso. Assim também com a terra. Muitas vezes, as
chuvas são tantas que ao invés de descerem e irem se acumulando nas entranhas,
simplesmente seguem adiante em enxurradas, deixando o solo ainda mais
empobrecido.
Contudo,
mesmo que tais problemas possam surgir com a chegada das trovoadas (e que um
dia haverão de chegar), a esperança do sertanejo é que logo acabe tanto
sofrimento causado pela estiagem já duradoura demais. O homem da terra nunca
perde a esperança de tudo renascer. Dia após dia, a cada madrugada ainda
escurecida, e ele saindo na porta para olhar a barra distante. Os olhos secos,
um tanto entristecidos diante da mesmice nos horizontes, não afastam, porém, outra
visão bem mais singela: o seu mundo sertão que ainda não morreu.
Mas a
verdade é que os tempos estão difíceis demais. O sertão secou de vez, tudo
esturricou, queimou, virou cinzas. Para onde o olho se volte, o que se tem é aquele
mundão acinzentado de sol, numa desolação que traz sofrimento somente em
avistar. E a vaquinha magra andejando lenta, entristecida, em busca de um
impossível sombreado. E o calango correndo de canto a outro, subindo em ponta
de pedra para se espantar com o avistado. Cactos mortos, espinhos caindo,
palmas retorcidas pela secura da seiva. Um mundo aflito e angustiado é esse
mundo sertão de agora.
Desde
muito - e sempre e sempre - que eu venho escrevendo aqui sobre a danada da seca
que assola o sertão sergipano. O cenário é o mesmo, a paisagem é a mesmo, a dor
e o sofrimento também. Daí que eu achar que qualquer texto escrito num ano
teria a mesma descrição de um novo escrito sobre a nova seca. Enganei-me. Dessa
vez nem Rachel de Queiroz (O Quinze) nem Graciliano Ramos (Vidas Secas) possuem
descrições parecidas com o que agora acontece.
Quem
duvidar, então que chegue até lá para presenciar e sofrer. O cesto de palma sem
uso num canto, a cocheira vazia, o tacho d’água vazio. Mais adiante, quando
ainda resta alguma vaquinha, somente uma carcaça andante. Lá de riba, onde o
céu se esqueceu da nuvem, descendo a fornalha ardente. O sol, o sol. E quando
se ouve um berro ao longe, não se sabe se ainda a vida ou o último gemido. Assim
o sertão de agora. A terra de fogaréu e mais triste paisagem.
Escritor
Membro da Academia de Letras
de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
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