Rangel Alves da
Costa*
Noite
silenciosa, fria, com um arremedo de chuva caindo lá fora. O dia inteiro assim
melancólico, sombreado, se tornando mais poeticamente triste após o entardecer.
A ventania
do dia se esvoaçou com a tarde. E a brisa tomou seu lugar num passo sem pressa.
Hora de revoada, do pôr do sol, das cores afogueadas se misturando às nuvens de
despedida. A noite já abre a porta.
Estranho
que aconteça assim. Todo dia assim. Quando a noite abre a porta e vai entrando,
escurecendo tudo ao redor, então começo a ouvir uma canção. Não sei se de onde
vem, de qual acorde ressoa, mas me chega tão suavemente como um Noturno de
Mozart ou Chopin.
Na minha
mente e onde eu esteja, sempre chega no mesmo volume, apenas um som levemente
distante e aconchegante. Talvez um piano das horas, um violino do tempo, uma
sonata da noite, um prelúdio de tristeza e solidão.
Abro a
janela na presença da melodia, caminho pela escuridão e o mesmo Danúbio, todo
azul; miro a lua, dialogo com as estrelas, lanço o olhar ao planeta invisível,
e a doce sinfonia bailando ao meu redor. Outra noite tive a certeza de ouvir
Vivaldi. Implorei para ficar com a Primavera de As Quatro Estações.
Não quero
entristecer em noites assim. A melodia é acalanto e não tormento, mas também
não posso deixar de, através da música, ver além da cortina que embalança na
janela adiante. Um dia joguei fora as chaves do baú. Um dia jurei não mais
abri-lo. Mas impossível em noites assim.
Um rosto,
uma face, uma feição, uma fotografia, um retrato amarelado. Um pedaço de papel,
um escrito, um livro antigo, uma folha seca marcando um Salmo. Ainda sinto o
cheiro dessa ausência, ainda me vejo diante do olhar, ainda ouço a voz. Noite,
noite, música, música, por que tanto aflige o ser?
O baú me
vem à memória com trilha musical. A velha canção me chega como um açoite de
vento. Fecho o baú e tento não ouvir a melodia, mas ainda resta a janela
aberta, a noite lá fora, a chuva fina caindo, um vapor que me invade feito uma
canção dolente. Sim, novamente a canção.
Não
adianta fechar a janela se ainda restam as paredes com suas presenças, olhares
e recordações. Outros retratos estão ali, também um velho relógio de parede que
emudece diante do meu olhar. E também um espelho. Não me olho mais, finjo que
ele não existe. Mas sei que dentro dele há uma orquestra com uma velha canção.
Numa
noite, igualzinha a uma noite qualquer de tristeza e solidão, transbordei
mentalmente o segundo copo de vinho e decidi ouvir a música que eu quisesse.
Não queria mais aquela canção martelando o pensamento, dilacerando meus
sentimentos. Somente outra música para afastá-la de vez. Pensei.
Transbordei
o imaginário quinto copo de vinho, seguidamente ouvi Offenbach, Carl Orff,
Tchaikovsky, Lizst, Bach, Mozart, Beethoven, Schubert, Strauss. Prelúdios,
noturnos, valsas, tocatas, sinfonias, sonatas, música sacra. Mas tudo dividido
com a outra canção, aquela que persistia em mim como a própria existência.
Não há
como fugir da canção, da canção noite adentro. Não posso fugir da noite, não
posso fugir desse momento mágico, ainda que sempre chegue trazendo
relembranças, tristezas e recordações. É na noite que os sentimentos afloram,
que o coração poetiza um verso de desamor, que o olho mareja para navegar. E
também a canção.
Farei de
sua música a trilha sonora de cada momento. Se não posso fugir do lago dos
cisnes ou da floresta encantada, se não posso deixar de singrar pelo lindo
Danúbio Azul ou pelas gôndolas venezianas ao entardecer, então que a música me
chegue assim tão suave e bela.
Que se
faça em mim a canção noite adentro. Não quero o silêncio do sofrimento. Não
quero mais sofrer. Preciso voar.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Caro amigo Rangel: Nesta sua bela crônica você fala que "é na noite que os sentimentos afloram". Exatamente. Eu, como um eterno aluno seu e de outros companheiros da literatura, vejo fluir as lembranças na memória exatamente à noite quando estou sozinho e as ruas da nossa Vila em pleno silêncio.
Abraços,
Antonio Oliveira - Serrinha-Ba.
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