Rangel Alves da Costa*
Tenho observado alguns apreciadores e até
pesquisadores do cangaço defendendo uma literatura cangaceira sem o uso dos
regionalismos, sem a transcrição do falar sertanejo, sem o uso dos termos
peculiares aos povos das caatingas, ao matuto das veredas espinhentas e da
desolação das caatingas.
Quer dizer, não vêem com bons olhos que os
autores transcrevam a literalidade da linguagem do sertanejo, nos moldes do
dito pelo homem da terra, nos seus jeitos próprios de se expressar. Por
consequência, a voz cabocla, tantas vezes iletrada, sem nada conhecer dos
meandros gramaticais e da língua, deixaria de ecoar segundo o falado para se
transformar num fraseado mais rebuscado e inteligível ao leitor. Adeus a
originalidade da pronúncia.
Acerca do tema, um pesquisador do cangaço
assim já se manifestou em escrito no facebook, no grupo O Cangaço: “Criou-se
uma cultura um tanto estranha de escrever, em diálogos contidos em livros sobre
cangaço, palavras que não são necessariamente expressões da Língua Portuguesa.
Os adeptos da modalidade, dizem que este método seria usado para
"preservar a fala própria do sertanejo". Será? Há algo construtivo
nisto? Não vou emitir qualquer juízo de valor, mas gostaria que os interessados
conhecessem a opinião de Ariano Suassuna sobre esse aspecto”.
Com efeito, há um vídeo no youtube (https://www.youtube.com/watch?v=FL-qbf0udq8)
onde o grande mestre da cultura nordestina fala acerca do preconceito
linguístico, criticando a utilização de termos incorretos para expressar a
verdadeira linguagem do povo. No seu entendimento, ao não utilizar a escrita
convencional na fala dos personagens, ainda que obviamente a locução saia
deturpada, se estará incorrendo em verdadeiro desrespeito ao povo. Eis o que
diz Ariano:
“Uma coisa que a mim me incomoda muito como
escritor é que normalmente as pessoas não distinguem muito a linguagem escrita
da linguagem falada. A linguagem escrita é uma convenção (...). Tem gente que
pensa diferente. Mas eu acho que existe até um preconceito contra o povo.
Quando o pessoal vai apresentar um personagem popular faz questão de errar a
grafia dos nomes. Olhe, a grafia é uma convenção. Ninguém fala de acordo com a
grafia. Veja, por exemplo, eu sou nordestino como você, eu não digo cruz, eu
digo “cruiz”; eu não digo luz, eu digo “luiz” (...). Pois bem, se a pessoa me
faz personagem de uma peça ou dum conto ou dum romance, eu digo “nóis”; eu digo
“cadera”, eu não digo cadeira. Mas se me botam como personagem escrevem cadeira
e escrevem nós (...). Agora, se é uma pessoa do povo faz questão de botar
“nóis”, “nóis vai”, não sei que. Eu acho que isso é uma falta de respeito com o
povo (...)”.
Certamente que a intenção de Ariano foi
criticar a premeditação do erro na grafia da fala de personagens. Tanto é assim
que sempre remete a personagens fictícios. O mestre se volta, pois, contra a
utilização da fala escrita com a mesma grafia da pronúncia do personagem. E a
situação se torna bastante diferente quando se trata não de ficção, mas da fala
real do povo, da escrita correspondente à sua fala. É preciso observar
atentamente a crítica lançada por Suassuna e não trazer tal contexto para a
literatura sobre o cangaço, pois se trata de uma realidade diferente.
Ao afirmar que “Criou-se uma cultura um tanto
estranha de escrever, em diálogos contidos em livros sobre cangaço, palavras
que não são necessariamente expressões da Língua Portuguesa”, talvez aquele
participante do grupo O Cangaço (facebook) tenha incorrido em alguns equívocos.
Em primeiro lugar, a Língua Portuguesa não é um repositório fechado de
expressões, pois a vivacidade da língua a torna em constante transformação, com
termos desacolhidos e outros que vão surgindo. Ademais, se são palavras
utilizadas por determinadas pessoas não há que se dizer que são alheias à
língua pátria. Quantas e tantas expressões vão surgindo que pelo uso acabam
fazendo parte do vocabulário, ainda que reservadamente a um povo?
Mas a verdadeira questão vem em segundo
lugar. Por mais que língua escrita não seja a fiel representação da língua
falada, não é incorreto escrever utilizando-se a variação linguística de
determinado povo. Pensar diferente seria desvalorizar os regionalismos e as
expressões linguísticas próprias de cada comunidade. Além disso, sou levado a
defender que quanto mais próxima da fala estiver a escrita mais o leitor se
verá diante do falante, do meio, do contexto em que se passa o relato.
Do mesmo modo, não vejo como acerto que a
escrita convencional iguale todos os falares. Ora, a obediência às convenções
linguísticas não tem o poder de exigir a transcrição de uma fala de um
autêntico sertanejo de forma igual ao falar de um sulista, de uma escrita
geral. Diga-se ainda que seria erro do escritor, em nome da tal convenção,
“consertar” o falar matuto, de modo a não soar como preconceito. Na verdade,
preconceito é querer ignorar esse linguajar tão autêntico e rico.
Por isso comungo da escrita como se fala.
Seria o fim do mundo o sertanejo dizer “Os cabra de Lampião arribaram sortando
fogo pelas fuça”, e mais tarde eu ter de ler: “Os cangaceiros de Lampião saíram
soltando fogo pelas narinas”.
Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Olá amigo!
Achei seu texto muito interessante, além de magnificamente escrito! É dúbio realmente! Preconceito ou transcrição?... Vale o quetionamento!
Abraço e apareça.
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