SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 24 de setembro de 2016

A PRIMAVERA DOS POETAS


*Rangel Alves da Costa


Um dia, sentados num café europeu vitoriano, dois poetas conversavam, quando um de repente exclamou: “Que me venha assim a primavera. Preciso de novas cores no meu jardim, preciso de novos aromas ao amanhecer, preciso dar mais poesia ao meu viver”. Ao que o outro falou: “Não há mais primavera. Nunca houve primavera. As estações estão apenas nas nossas mentes. Suas flores e seus aromas são as mesmas folhas mortas que há em mim. E muito desejaria que não morressem minhas flores de plástico”.
“Engana-se, amigo, engana-se. A primavera existe sim, sempre será essencial que continue existindo. Mesmo que não venha nas suas manhãs, nos seus jardins, nas suas cores, nos seus aromas e suas fragrâncias, será sempre necessário que continue existindo. O ser humano precisa dessa estação em sua vida, que seja realista ao olhar ou de concepção ilusória. Não podemos perder o senso mais profundo da existência do belo, da permanência das esperanças. Ademais, a janela dos olhos devem se abrir nas manhãs em busca do arbusto verdejante, da folhagem viçosa, da pétala rodeada de beija-flores, das flores, lírios, rosas e jasmins, no mais profundo do olhar, do coração, dos sentimentos. Assim, na estação a primavera me chega como um alento d’alma, e, se ela parte, ainda assim sinto que necessito continuar buscando suas flores pelos jardins. E um jardim em qualquer lugar”. Afirmou o primeiro poeta.
O outro logo expressou: “Abraça-te ao otimismo como um cão ao mais fétido dos ossos. Diante de ti, bom amigo, certamente o tempo de desolação estará povoado de borboletas e colibris. Que bom que pense assim. Certamente que faz bem ao âmago avistar chaminés como roseirais e muros cimentados com a feição de heras. E quantos pomares não estariam onde povoa o ferro e a ferrugem, a pedra e o espinho. Não me desfaço de sua primavera florida agora e em qualquer estação, mas eu, porém, tenho de me reconhecer como o mais triste dos jardineiros. Qual a valia das rosas, begônias e crisântemos, ante o som ensurdecedor da máquina triturando ao lado? Qual a beleza e o viço da pétala perante a pele mendiga e ossuda que passa catando restos nos beirais das calçadas? Qual a sensação de ter borboletas e beija-flores ao redor da fumaça, da sirene, do apito, do fumo que sai voraz das caldeiras? Sim, eu também queria a primavera mais primaveril, a manhã mais pujante de cor, a paisagem mais doce e cativante. Contudo, não sou apenas poeta, sou humano, essencialmente humano, e, como tal, hei de reconhecer que nós, os homens, nas nossas ânsias e indiferenças, acabamos apagando os calendários. E a primavera morreu”.
“Sinto que o teu copo transborda de pessimismo. E não posso tirar-lhe a razão. Mas tenho a minha razão. Talvez o homem tenha se deixado demasiadamente levar pelos negativismos da vida. Sim, os tempos são difíceis, angustiantes, mas não de modo a não poder avistar outras realidades. A sensibilidade ainda deve prevalecer, eis que os bons sentimentos superam as angústias da alma. Por isso reafirmo que há primavera e vivemos num tempo de primavera. Não apenas uma estação viva no calendário, mas principalmente pelos jardins do olhar e do coração. Encontro uma rosa e a multiplico, encontro um colibri e o multiplico. Sinto a poesia do perfume, a gratidão florida em cada encontro com as singelezas da vida. Tal primavera existe. E talvez além e mais verdadeira que a própria primavera”. Foram as palavras do primeiro poeta, que em seguida ouviu:
“Então colhe tuas flores que eu colho as hastes pontudas que a tudo dilaceram. Tens um jardim, preserva-o, conserva-o, e eu tenho pedras sobre meus sapatos e ácidos nas minhas veias. Mas uma coisa é certa, ao morrermos sobre o teu túmulo vingará uma bela flor, e sobre o meu apenas a cruz solitária e feia. E nisto você tem razão: o outono é sempre mais triste”.
Em seguida, silenciosamente, levantaram e saíram caminhando por entre canteiros ainda desnudos. Todo florido ao olhar de um poeta. Ressequido demais perante os olhos do outro.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com  

Nenhum comentário: