*Rangel Alves da
Costa
Um dia,
sentados num café europeu vitoriano, dois poetas conversavam, quando um de
repente exclamou: “Que me venha assim a primavera. Preciso de novas cores no
meu jardim, preciso de novos aromas ao amanhecer, preciso dar mais poesia ao
meu viver”. Ao que o outro falou: “Não há mais primavera. Nunca houve
primavera. As estações estão apenas nas nossas mentes. Suas flores e seus
aromas são as mesmas folhas mortas que há em mim. E muito desejaria que não
morressem minhas flores de plástico”.
“Engana-se,
amigo, engana-se. A primavera existe sim, sempre será essencial que continue
existindo. Mesmo que não venha nas suas manhãs, nos seus jardins, nas suas
cores, nos seus aromas e suas fragrâncias, será sempre necessário que continue
existindo. O ser humano precisa dessa estação em sua vida, que seja realista ao
olhar ou de concepção ilusória. Não podemos perder o senso mais profundo da
existência do belo, da permanência das esperanças. Ademais, a janela dos olhos
devem se abrir nas manhãs em busca do arbusto verdejante, da folhagem viçosa,
da pétala rodeada de beija-flores, das flores, lírios, rosas e jasmins, no mais
profundo do olhar, do coração, dos sentimentos. Assim, na estação a primavera
me chega como um alento d’alma, e, se ela parte, ainda assim sinto que
necessito continuar buscando suas flores pelos jardins. E um jardim em qualquer
lugar”. Afirmou o primeiro poeta.
O outro logo
expressou: “Abraça-te ao otimismo como um cão ao mais fétido dos ossos. Diante
de ti, bom amigo, certamente o tempo de desolação estará povoado de borboletas
e colibris. Que bom que pense assim. Certamente que faz bem ao âmago avistar chaminés
como roseirais e muros cimentados com a feição de heras. E quantos pomares não
estariam onde povoa o ferro e a ferrugem, a pedra e o espinho. Não me desfaço
de sua primavera florida agora e em qualquer estação, mas eu, porém, tenho de
me reconhecer como o mais triste dos jardineiros. Qual a valia das rosas,
begônias e crisântemos, ante o som ensurdecedor da máquina triturando ao lado?
Qual a beleza e o viço da pétala perante a pele mendiga e ossuda que passa
catando restos nos beirais das calçadas? Qual a sensação de ter borboletas e
beija-flores ao redor da fumaça, da sirene, do apito, do fumo que sai voraz das
caldeiras? Sim, eu também queria a primavera mais primaveril, a manhã mais
pujante de cor, a paisagem mais doce e cativante. Contudo, não sou apenas
poeta, sou humano, essencialmente humano, e, como tal, hei de reconhecer que
nós, os homens, nas nossas ânsias e indiferenças, acabamos apagando os
calendários. E a primavera morreu”.
“Sinto que
o teu copo transborda de pessimismo. E não posso tirar-lhe a razão. Mas tenho a
minha razão. Talvez o homem tenha se deixado demasiadamente levar pelos
negativismos da vida. Sim, os tempos são difíceis, angustiantes, mas não de
modo a não poder avistar outras realidades. A sensibilidade ainda deve
prevalecer, eis que os bons sentimentos superam as angústias da alma. Por isso
reafirmo que há primavera e vivemos num tempo de primavera. Não apenas uma
estação viva no calendário, mas principalmente pelos jardins do olhar e do
coração. Encontro uma rosa e a multiplico, encontro um colibri e o multiplico.
Sinto a poesia do perfume, a gratidão florida em cada encontro com as
singelezas da vida. Tal primavera existe. E talvez além e mais verdadeira que a
própria primavera”. Foram as palavras do primeiro poeta, que em seguida ouviu:
“Então
colhe tuas flores que eu colho as hastes pontudas que a tudo dilaceram. Tens um
jardim, preserva-o, conserva-o, e eu tenho pedras sobre meus sapatos e ácidos
nas minhas veias. Mas uma coisa é certa, ao morrermos sobre o teu túmulo
vingará uma bela flor, e sobre o meu apenas a cruz solitária e feia. E nisto
você tem razão: o outono é sempre mais triste”.
Em
seguida, silenciosamente, levantaram e saíram caminhando por entre canteiros
ainda desnudos. Todo florido ao olhar de um poeta. Ressequido demais perante os
olhos do outro.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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