SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 16 de setembro de 2016

MORTE NO VELHO CHICO


*Rangel Alves da Costa


Quis o destino que a realidade se embrenhasse de forma terrível na ficção. A trama de o Velho Chico, a novela, foi forjadamente transformada pelo Velho Chico, o rio. O São Francisco, aquele mesmo velho carcomido de tempo e pelas agruras humanas, levantou do seu leito, ou bramiu nas suas entranhas, e do espelho d’água emergiu sua outra face. Aquela conhecida por poucos.
No seu abraço molhado, como se chamasse a vida para as profundezas, enlaçou de morte Domingos Montagner, o Santo, personagem da novela do mesmo nome da alcunha do rio: Velho Chico. Aos 54 anos, o experiente ator não sabia, porém, que aquele script ninguém consegue aprender. Somente o próprio rio nas linhas de sua indecifrável escrita.
Já perto do desfecho, com as últimas cenas sendo gravadas no leito e às margens do velho rio nordestino, eis que o inesperado acontece. Ou simplesmente tinha de acontecer. Assim que as águas aumentaram suas forças e o ator não mais conseguiu alcançar um lugar seguro, daí em diante estava provocada uma difícil reviravolta tanto na vida como na trama.
Talvez Domingos Montagner acreditasse conhecer aquelas águas. Não era novato na região, naquelas beiradas e naquele leito. Quando gravou a novela Cordel Encantado, fazendo papel do cangaceiro Herculano, naqueles mesmos sertões o ator conviveu e naquelas mesmas águas se banhou. Só que agora o papel era outro e a trama não se repetiu. Apenas o enredo do destino.
A força do rio bradando voraz, dolorosa, imprevista. E impensada por que se imaginava que a mansidão de hoje daquelas águas pudesse ser vencida por todos. Com efeito, o rio está frágil, lento, magro, mas continua com seus mistérios, com seus segredos. Nada do que se avista por cima se repete por baixo. A mansidão sempre esconde profundos enigmas em suas submersões. Eis a face oculta do Velho Chico, o rio.
Não é história nem de ribeirinho nem de pescador: mesmo que se acredite um leito brando, pacífico, e fácil de ser vencido, ninguém ouse confrontá-lo. Quanto mais seco o rio mais as panelas d’água ganham força ao redor das pedras grandes e verdadeiros redemoinhos se formam abaixo. O corpo do ator, por exemplo, foi encontrado a muitos metros do prumo d’água. Uns dizem que dezoito e outros a trinta metros.
Já conheci beiradeiro, gente de convívio diário com o rio, que mesmo nadando igual a peixe, foi-se sumindo nos seus escondidos. Foi assim com o finado Epifânio de Canindé de São Francisco e tantos outros viventes das águas são-franciscanas. Também barqueiros, canoeiros, pescadores que de repente se veem chamados por essa força desconhecida e impetuosa. São os mistérios do rio, são as forças sempre presentes no Velho Chico.
Mas não se pode falar, perante este acontecido com o ator, em vingança ou maldição do rio. Ainda que a trama novelesca não tenha conseguido retratar o Velho em suas outras verdades - a história ribeirinha, a beleza do viver beiradeiro com suas lendas, crenças e tradições -, e se voltado basicamente para uma alegórica trama coronelista, o fato em si demonstra apenas o rio acordando e dizendo do que ainda é capaz.
Verdade que as águas mansas e ao mesmo tempo traiçoeiras, tão belas e ao mesmo tempo assustadoras, sempre carregam lições no seu leito e profundezas: os seus mistérios jamais serão revelados, nem mesmo àqueles que vivem às suas margens e se avistando nos seus espelhos. E se aquele que presume conhecê-lo como a palma da mão, de vez em quando sucumbe aos seus segredos, melhor sorte não terá aquele que apenas ouve o seu canto de sereia.
E eis que esse Velho acabou escrevendo um capítulo próprio na novela, chamando às aguas, e para o sempre, um daqueles que tentavam reviver sua história. Somente o rio há de dizer seus motivos, suas razões de assim ter acontecido. No confronto do real e da ficção, apenas o capítulo da dolorosa verdade.
Tudo aconteceu de forma trágica, inesperada, dolorosa demais para o mundo artístico, familiares do ator e admiradores. Verdadeiramente, há poucos registros onde as tramas se confundem tanto com as realidades da vida. O acontecido poderia estar escrito, apenas ficcionalmente, na trama da novela. Não foi escrito, mas aconteceu.
Recordo muito bem de uma cena no primeiro capítulo da novela, quando Encarnação vai à beira do rio para recordar um filho desaparecido naquelas águas. Estas sussurravam, soltavam sons das profundezas, se chocavam com as pedras nas margens. E tudo parece se repetir agora, ao final da novela. As cenas, misteriosamente, revividas.
Mas o rio está lá, na sua plangência de sempre. As águas passam, sempre seguem adiante. Ficam somente os adeuses, as dores, as lágrimas.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Um comentário:

Ana Bailune disse...

Toda vez que vejo a novela, admiro a beleza do rio, mas me sinto, ao mesmo tempo, triste.
Ele passa uma sensação de solidão e tristeza.