*Rangel Alves da Costa
Quis o destino que a realidade se embrenhasse
de forma terrível na ficção. A trama de o Velho Chico, a novela, foi
forjadamente transformada pelo Velho Chico, o rio. O São Francisco, aquele
mesmo velho carcomido de tempo e pelas agruras humanas, levantou do seu leito,
ou bramiu nas suas entranhas, e do espelho d’água emergiu sua outra face.
Aquela conhecida por poucos.
No seu abraço molhado, como se chamasse a
vida para as profundezas, enlaçou de morte Domingos Montagner, o Santo, personagem
da novela do mesmo nome da alcunha do rio: Velho Chico. Aos 54 anos, o
experiente ator não sabia, porém, que aquele script ninguém consegue aprender.
Somente o próprio rio nas linhas de sua indecifrável escrita.
Já perto do desfecho, com as últimas cenas
sendo gravadas no leito e às margens do velho rio nordestino, eis que o
inesperado acontece. Ou simplesmente tinha de acontecer. Assim que as águas aumentaram
suas forças e o ator não mais conseguiu alcançar um lugar seguro, daí em diante
estava provocada uma difícil reviravolta tanto na vida como na trama.
Talvez Domingos Montagner acreditasse
conhecer aquelas águas. Não era novato na região, naquelas beiradas e naquele
leito. Quando gravou a novela Cordel Encantado, fazendo papel do cangaceiro
Herculano, naqueles mesmos sertões o ator conviveu e naquelas mesmas águas se
banhou. Só que agora o papel era outro e a trama não se repetiu. Apenas o
enredo do destino.
A força do rio bradando voraz, dolorosa,
imprevista. E impensada por que se imaginava que a mansidão de hoje daquelas
águas pudesse ser vencida por todos. Com efeito, o rio está frágil, lento,
magro, mas continua com seus mistérios, com seus segredos. Nada do que se
avista por cima se repete por baixo. A mansidão sempre esconde profundos enigmas
em suas submersões. Eis a face oculta do Velho Chico, o rio.
Não é história nem de ribeirinho nem de
pescador: mesmo que se acredite um leito brando, pacífico, e fácil de ser
vencido, ninguém ouse confrontá-lo. Quanto mais seco o rio mais as panelas
d’água ganham força ao redor das pedras grandes e verdadeiros redemoinhos se
formam abaixo. O corpo do ator, por exemplo, foi encontrado a muitos metros do
prumo d’água. Uns dizem que dezoito e outros a trinta metros.
Já conheci beiradeiro, gente de convívio diário
com o rio, que mesmo nadando igual a peixe, foi-se sumindo nos seus escondidos.
Foi assim com o finado Epifânio de Canindé de São Francisco e tantos outros viventes
das águas são-franciscanas. Também barqueiros, canoeiros, pescadores que de
repente se veem chamados por essa força desconhecida e impetuosa. São os
mistérios do rio, são as forças sempre presentes no Velho Chico.
Mas não se pode falar, perante este
acontecido com o ator, em vingança ou maldição do rio. Ainda que a trama
novelesca não tenha conseguido retratar o Velho em suas outras verdades - a
história ribeirinha, a beleza do viver beiradeiro com suas lendas, crenças e
tradições -, e se voltado basicamente para uma alegórica trama coronelista, o
fato em si demonstra apenas o rio acordando e dizendo do que ainda é capaz.
Verdade que as águas mansas e ao mesmo tempo
traiçoeiras, tão belas e ao mesmo tempo assustadoras, sempre carregam lições no
seu leito e profundezas: os seus mistérios jamais serão revelados, nem mesmo
àqueles que vivem às suas margens e se avistando nos seus espelhos. E se aquele
que presume conhecê-lo como a palma da mão, de vez em quando sucumbe aos seus segredos,
melhor sorte não terá aquele que apenas ouve o seu canto de sereia.
E eis que esse Velho acabou escrevendo um
capítulo próprio na novela, chamando às aguas, e para o sempre, um daqueles que
tentavam reviver sua história. Somente o rio há de dizer seus motivos, suas
razões de assim ter acontecido. No confronto do real e da ficção, apenas o
capítulo da dolorosa verdade.
Tudo aconteceu de forma trágica, inesperada,
dolorosa demais para o mundo artístico, familiares do ator e admiradores.
Verdadeiramente, há poucos registros onde as tramas se confundem tanto com as
realidades da vida. O acontecido poderia estar escrito, apenas ficcionalmente,
na trama da novela. Não foi escrito, mas aconteceu.
Recordo muito bem de uma cena no primeiro
capítulo da novela, quando Encarnação vai à beira do rio para recordar um filho
desaparecido naquelas águas. Estas sussurravam, soltavam sons das profundezas,
se chocavam com as pedras nas margens. E tudo parece se repetir agora, ao final
da novela. As cenas, misteriosamente, revividas.
Mas o rio está lá, na sua plangência de
sempre. As águas passam, sempre seguem adiante. Ficam somente os adeuses, as
dores, as lágrimas.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Toda vez que vejo a novela, admiro a beleza do rio, mas me sinto, ao mesmo tempo, triste.
Ele passa uma sensação de solidão e tristeza.
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