*Rangel Alves da
Costa
Conheço um
leito de rio, tão magistral e tão formoso, tão pujante e tão belo, tão
imponente e tão vasto, que costumei a chamá-lo de leito das águas grandes. Não
sei se tal percepção, de ser aquele leito o maior e mais belo de todos, é
apenas fruto da memória e da recordação, vez que comigo as relembranças de ser
aquele rio tudo aquilo que os livros diziam: O grande São Francisco, o imenso e
caudaloso Velho Chico!
Hoje,
infelizmente, de vez em quando ouço dizer que o São Francisco não é mais sequer
a sombra daquele rio imponente de outrora. E no mesmo sentido a assertiva de o
Velho Chico estar nas suas últimas forças, nos seus últimos suspiros, em estado
de verdadeira penúria. Na verdade, meus olhos avistam o leito padecente, magro,
numa finura e esmorecimento inimaginados para um rio daquele porte, mas
simplesmente teimo em não acreditar.
Ora, meu
Deus, o menino nunca quer que o seu boizinho de barro se quebre, o menino nunca
quer que sua bola de meia desapareça, o menino nunca suporta ter de abandonar
sua bola de gude, seu cavalo de pau, seu brinquedo infantil. A isto se denomina
amor, fidelidade, desejo de ter sempre consigo. Assim também com o meu rio,
cujo leito fica a apenas catorze quilômetros de onde estou agora, margeando o
meu sertão sofrido de seca, acolhendo a vida ribeirinha que ainda resta nos
seus costados. Também sou ribeirinho, pois nascido nesse vasto e belo mundo do
Sertão do São Francisco. Sou sergipano de Poço Redondo.
Por isso
mesmo sei que o meu rio está muito diferente de outros idos, que agora está
combalido e já sem águas nem forças suficientes para que embarcações sigam de
canto a outro. Sei que o meu rio não é mais moradia constante do surubim, da
tubarana e tantos outros peixes grandes que fartavam as panelas ribeirinhas e
sertões adentro. Também sei que as velhas carrancas não mais despontam nos
horizontes protegendo as novas e velhas embarcações. Sei ainda que a povoação
do rio, tanto o pescador como o habitante de suas margens, agora se vê apenas
com as memórias dos tempos de fartura e de doce sobrevivência.
As
povoações ribeirinhas, principalmente aquelas pequeninas que foram surgindo às
margens durante as primeiras penetrações aos sertões, sofrem agora de abandonos
indescritíveis. As cidades ricas, de suntuosos monumentos, de casarios
imponentes e comércios prósperos, agora se veem estagnadas, paradas no tempo,
sem perspectivas futuras. Melhor sorte não há naqueles lugarejos e aldeias
beiradeiras, tendo de suportar agora um empobrecimento crescente e doloroso.
Do
verdadeiro rio, daquele São Francisco de tempos passados, de antes da
instalação das usinas hidrelétricas ao longo do seu leito, restam somente as
histórias, as memórias, as relembranças e as saudades. Restam também as lendas,
as crenças, as culturas e as tradições ribeirinhas, mas nada que se sustente
sem que o povo do lugar se mantenha como sua voz. E o povo ribeirinho também
está escasseando, sumindo, se mudando para lugares outros onde haja melhores
perspectivas de vida. Mas me permito ficar com as saudades.
Eternizo –
e certamente eternizarei para o sempre na minha memória – o leito das águas
grandes. Aquele leito onde as grandes embarcações aportavam apara trazer e
levar pessoas, alimentos e tudo aquilo que servia de sobrevivência à vida
sertaneja. Aquele leito tomado de canoas e pequenas embarcações e seus
pescadores lançando redes e logo trazendo a fartura. Aquele leito de homens e
mulheres sentados nas calçadas altas para apreciar as belezas das chegadas e
partidas, mas principalmente das águas que sempre pareciam com novos fascínios.
Neste
leito das águas grandes ainda mora a minha memória e a minha saudade. Hoje o
rio é outro rio, mas continua em mim aquele mesmo rio. Sempre o mais belo e o
mais fascinante de todos os rios. Um rio onde me alento na mesma poesia de
Pessoa: o mais belo rio, pois o rio que passa na minha aldeia. A minha aldeia
sertaneja.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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