*Rangel Alves da
Costa
Nada mais
citarei acerca da tragédia com o ator global nas águas do Velho Chico nem das
inúmeras teorias conspiratórias envolvendo o episódio. Cada um compreende o
fato e procura explicá-lo a seu modo, pautando pelo entendimento e
conveniência. Uma coisa só a dizer: que não ousem transformar o rio em vilão ou
colocar forças maléficas sobrenaturais nas suas entranhas. Ali, desde a
nascente ao desaguadouro, apenas um rio com seu percurso, sua história, seu
viver ladeado ao ribeirinho. Apenas um rio, mas o mais belo dos rios.
Tudo,
menos o rio, seja o São Francisco ou qualquer outro leito, jamais poderá ser
culpabilizado pelos acontecimentos nas suas águas. Diversas embarcações já
afundaram ali, canoas já sumiram como por encanto, pescadores e viajantes já
conheceram de suas surpresas. Mas apenas um rio que corre o seu destino, que
segue adiante mesmo que o homem já tenha tomado grande parte de suas seivas.
Porém, não tudo. Suas forças, correntezas e abismos se escondem lá embaixo,
movem seus impulsos sem que ninguém perceba. Acima, no espelho d’água, somente
o leito escorrendo.
Contudo,
não foi pela panela que borbulha ao fundo ou pelo redemoinho que corre de canto
a outro, que o Velho Chico se tornou tão conhecido. Sua grandeza antecede a
chegada do homem, já se estendia caudalosamente antes mesmo que o homem
primitivo lançasse seu dardo em busca de peixe ou o índio nele deitasse a sua
rústica canoa. Aquele mundão de água correndo entre serras e descampados,
curveando penhascos, encharcando as margens e florescendo o viver, já se fazia
de beleza inigualável antes mesmo que a filosofia definisse o belo.
E é tal
beleza que ainda pulsa aos olhares e sentimentos. Não somente a beleza visual,
mas principalmente a formosura histórica, geográfica, cultural, humana,
sentimental. Não há ribeirinho que não se ajoelhe agradecido às suas beiradas,
não há beiradeiro que não guarde uma devoção especial pelas suas águas. O São
Francisco é algo espiritual, gestado e perpetuado na alma. Não há olhar mais
envelhecido que não mareje ante suas antigas histórias, ante as recordações e
saudades, ante as relembranças das vidas e dos cotidianos ao lado do seu leito.
Além de
sua reconhecida grandiosidade e pujança histórica, sobre leito que foi caminho
ao hostil e ao desconhecido, e por muito tempo se mostrou volumoso a cada
porto, o São Francisco sempre possuiu o dom de encantar e devocionar todos
aqueles que com ele convivem. E tamanha a devoção e o afeto que até hoje, mesmo
nas suas magrezas e rasos ossudos e arenosos, é como se ele se derramasse
inteiro num poema. Eis que o mais belo rio que passa pela aldeia ribeirinha,
pela aldeia sertaneja, pela aldeia nordestina.
Com
efeito, o sentimento ribeirinho possui analogia aos versos escritos por
Fernando Pessoa, onde o rio de sua aldeia era o mais belo rio simplesmente pelo
fato de ser o rio que passa na sua aldeia: “O Tejo é mais belo que o rio que
corre pela minha aldeia, mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha
aldeia porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia... Mas poucos
sabem qual é o rio da minha aldeia. E para onde ele vai e donde ele vem. E por
isso, porque pertence a menos gente, é mais livre e maior o rio da minha
aldeia...”.
Assim, o
São Francisco sempre foi o mais belo rio daquela gente, sempre foi o rio da
vida beiradeira, sempre foi a razão da existência de gerações. Pelas águas do
Velho Chico brotou a existência sertaneja, pelos seus caminhos chegaram os
primeiros habitantes, nos seus portos chegavam e partiam riquezas, nos seus
costados o embarque e desembarque do alimento e de tudo aquilo que permitia
viver ainda num sertão distante de tudo. E nas suas margens as aldeias, as
pequenas povoações, os currais, as veredas sendo abertas para o mundo adiante.
Por onde
passava, o Velho Chico ia gestando um mundo e um viver tão próprios que até
hoje o homem não desapartou da dependência de suas águas. Desde os tempos mais antigos, ali nos
casebres, nas choupanas, nas casinholas de pescadores, por cima dos barcos e no
emaranhado das redes, na ponta dos anzóis e nas areias ao redor, tudo filho das
águas. Daí ser o São Francisco o pai, a mãe e o protetor, de tudo que se chama
ribeira, margem, pescador, barqueiro, vivente daquelas distâncias molhadas e de
tão sublime sobrevivência.
Sim, a
razão com Fernando Pessoa. Mas também com todo ribeirinho e todo pescador, com
todo vivente de suas beiradas. O rio do poeta é mais bonito que o Tejo porque é
o rio que passa pela sua aldeia. Assim também a beleza maior do Velho Chico ao
passar pelas aldeias nordestinas. Não é mais aquele rio imenso e caudaloso, não
é mais caminho de grandes embarcações, mas ainda tão belo quanto aquele caudal
de outros tempos. Eis que o amor está no que os olhos avistam e o coração sente.
E por isso mesmo a eterna carranca despontando ao longe.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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