*Rangel Alves da
Costa
Lá longe
há um lugar por onde já passou Jorge Amado, Rachel de Queiroz, João Ubaldo
Ribeiro, Gilberto Freyre, Câmara Cascudo, Graciliano Ramos, Euclides da Cunha e
tantos outros escritores, novelistas, memorialistas. No lá longe todos eles
beberam na fonte antiga, nas memórias nordestinas, nos engenhos, nas
casas-grandes e senzalas, no viver interiorano, nas vidas secas, nas lutas
cacaueiras de tocaia e sangue, nos velhos cabarés e nas fomes tantas e nas
desolações desmedidas.
Lá longe e
tão perto. Agora, na realidade presente. Aquilo que os livros contaram, ora em
ensaios, romances ou memórias, ainda estão, na medida da permanência, ainda
presentes pelo Nordeste e seus sertões. E assim por que há uma região
nordestina e muitos e diversificados sertões, desde os sertões litorâneos,
quase beirando as metrópoles, aos sertões distantemente autênticos: o sertão
sertanejo, de aridez e secura, de chão rachado e planta recurvada pela fome de
chuva.
Ainda é
possível avistar a escrita amadiana em muitos de seus recantos. Não mais os
coronéis desafetos digladiando poderes sobre as terras, mas o mesmo coronelismo
político, do mando e da submissão. Não há mais o terno de linho branco, mas há
a mesma ordem, o mesmo exercício de poder político remoendo adversários. Os
jagunços são outros, as emboscadas e tocaias também, pois a paga da maldade vem
pela mão sangrenta de qualquer reles covarde. Capatazes citadinos, seguranças,
bajuladores que ainda atemorizam sertões.
Mas também
ainda a existência dos fazeres cotidianos tão expressivos na escrita amadiana.
Ora, Jorge Amado era de escrita moleca, travessa, tão realista que impossível
não avistar as cenas na sequência descritas. Cabarés e prostitutas balofas,
cafetinas e apaixonados ao pé do balcão, mas também a doçura e a beleza das
agrestinas de encantar corações. Eis que nas distâncias matutas tantas
Gabriela, Tereza Batista, Dona Flor, Malvinas e tantas outras. As mesmas
singelezas, canduras e segredos caboclos. Nem os modismos e as tentações
modernas acabaram de vez com pessoas assim, ainda avistadas e reconhecidas naqueles
sertões de lá longe.
Rachel de
Queiroz foi lá longe ao tratar do drama da seca e dos flagelados. O seu romance
O Quinze cuida exatamente do sofrimento de um povo afligido pela voraz estiagem
nordestina. Situação não muito diferente daquela narrada por Graciliano Ramos
em seu Vidas Secas. Neste enredo tipicamente regionalista, nordestino por
essência, Fabiano se vê tomando o caminho do mundo levando a família e seu
cachorro Baleia. Daí o padecimento pela pobreza e submissão, pelas vidas
minguadas e opressões. As estradas secas e empoeiradas são as presenças
características nas duas obras, e nas mesmas constâncias ainda hoje observadas
nas distâncias sertanejas em tempos de agonias por falta de pingo d’água, da
fome e da desvalia de tudo.
Em Rachel
também a vertente cangaceira, pois a escritora cearense foi buscar na saga do
Capitão Virgulino o mote para sua mais famosa peça teatral: Lampião. Nesta, eis
novamente o Nordeste em sua pujança, só dessa vez marcado pelo banditismo, pela
catingueira varada de bala, pelo medo e a perseguição. A paisagem descrita pela
autora é aquela mesma ainda hoje encontrada pelas veredas e carrascais, pois o
lá longe de ontem ainda continua no lá longe de agora, vez que mesmo as
devastações ainda não conseguiram extinguir o retrato espinhento das entranhas
matutas sertões adentro.
Eis o
grito de um Sargento Getúlio vociferando contra tudo e contra todos, desde as assombrações
pessoais, interiores, aos autoritarismos do poder. Em Getúlio, a voraz rudeza
da indignação do homem tão bem descrita por João Ubaldo Ribeiro. Getúlio é
sargento aposentado, mas antes de tudo é homem, e sujeito indignado com a
própria sorte de estar fazendo um serviço a mando de liderança política, e
contra um inocente desafeto. Então, enquanto o carro vai cortando as estradas
de chão, ladeado pela aspereza da terra e seus tufos espinhentos, o
transtornado sargento busca prestar contas de si mesmo e do mundo. E vão
ecoando injustiças, opressões, medos, realidades medonhas e até sangrentas de
passado e presente que chegam como terríveis fantasmas.
E aquele
lá longe euclidiano, de o homem sertanejo ser antes de tudo um forte, continua
aqui tão perto quanto a própria dor de Canudos, do Conselheiro e seus beatos e
fanáticos. Nas entranhas da mata a guerra cega, sem fim, num mundo que a paz da
fé incontida era motivo de bala e de morte. Os algozes negaram a fé daquele
povo, impingindo-lhes a destruição, como até hoje se nega o direito fundamental
à dignidade. Aquele pobre nordestino que tombou no Arraial e arredores é o
mesmo que ainda tomba na selva civilizada. Mas por que o sertanejo, do passado
e do presente, não morreu de vez? Que diga Euclides da Cunha: Por que antes de
tudo é raiz da própria terra. É antes de tudo um forte.
Lá longe
aquele menino de engenho, aquele negro sendo açoitado, aquele casarão e sua
varanda de caldeirão e purgatório. Um tempo de lá longe tão bem descrito nos
livros, mas que ainda presente nas páginas da vida vã. Quem dera que o lá longe
de sofrimento já não restasse sequer em ossos. Mas de vez em quando, no tempo
presente e por todo lugar, tudo com afeição de antigamente. Tudo num só
percurso. Nada lá longe.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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