*Rangel Alves da Costa
Simbolizando
a pobreza, alguém já escreveu que se trata de um permanente estado de sombras,
sempre tendente à escuridão. Eis que o sol parece não brilhar sobre a miséria,
as luzes são sempre sombrias, há algo como um embaçamento em tudo. Uma névoa
triste encobre sua feição, há uma melancólica moldura de horizonte tempestuoso
e uma paisagem anuviada pelas penumbras do sofrimento.
Mesmo sem
nada para cozinhar ou assar, a miséria sempre parece mantendo aceso o fogo de
chão. E de um fogo que vai soltando e espalhando fumaça, nublando os arredores,
tornando ainda mais sombria a moradia e a própria existência. Não há fogo aceso
nem fumaça, mas aquele aspecto de tempo fechado, fumacento, cinzento, vai
tornando em espectro ainda maior aquele cenário de desalento. Charles Dickens
descreve assim, em retratos escurecidos e tristes, aquela Londres de miseráveis
e desesperançados.
Mesmo o
sol incidindo em mil chamas e o tempo lá fora em brilho escaldante, tudo possui
uma cor diferente após a porta e a janela. Ainda que porta e janela abertas,
escancaradas, ultrapassar a soleira para dentro significa encontrar um mundo
sem luz. Nas poucas dependências, o sofrimento envelhecido, o luto pela vida. As
brumas sonolentas e cansadas avançam pelos cantos e depois se instalam pelos olhos
dos sobrevivos. Uma tristeza sem fim nos olhares acostumados a pouco avistar
esperança.
Ali
certamente um lar, mas um lar diferente. Ali pessoas, viventes, moradores, mas
uma gente diferente. Ali vidas, sonhos, esperanças, alegrias, tristezas, lutas,
sofrimentos, contentamentos, realizações, angústias, mas tudo diferente. E por
que diferente, se uma moradia, habitantes e vidas? Simplesmente por causa das
carências, das faltas e necessidades que nunca permitem manhãs e dias mais
ensolarados, que nunca consentem afirmar que há satisfação no viver.
Ali tudo
luta, tudo suor, tudo sofrimento. Diferentemente do que ocorre em outras
situações de vida, não há manhã, tarde ou noite, como marcos de fazeres
diferentes na ambientação da miséria. Tendo o que fazer ou não, as horas apenas
lembram as carências, o que falta, o que precisa ser encontrado. E falta o pão,
falta a farinha, falta o açúcar, falta o fubá, falta o café, falta quase tudo.
Mas há fome, há menino chorando, há panela vazia, há o tempo que passa e que
vai atormentando cada vez mais.
Num canto
um velho sofá trazido duma calçada da burguesia, noutro canto um banco ou
tamborete, num canto da sala uma rede estendida, uma esteira pelo chão, uma
velha mesa com jarro de flores de plástico por cima, velharias por todo lugar.
O menino corre, um menino pede um pedaço de pão, um menino chora, um menino
adormece na esteira do chão. Potes por cima de trempes, moringa com pouca água,
um fogo de chão apagado, panelas sem serventia. E João, e José, e Maria, e Lúcia,
e Pedro, e Salustiana, e Fabiano, e Sebastiana, e Miguel, e pessoas, e gente, e
um povo no sofrimento da vida e no sacrifício da existência. Haverá luz de sol
que entre para encher de brilho uma moradia assim?
Como dito,
não há muita diferença entre o despertar e o adormecer, entre a manhã e a
noite, entre o dia ou o mês, pois se não fossem as horas correndo para lembrar
as necessidades tantas, até que se imaginaria um mundo de tanto faz, pois
esquecido em si mesmo. Enquanto tudo se apressa lá fora, enquanto as outras
pessoas olham para os relógios para não esquecer compromissos, ali somente o
tempo de esperar o instante seguinte. É no instante seguinte que o sofrimento
aumenta ou arrefece, pois é nele que está toda conquista. O pão que chega, o
remédio doado, um pedaço disso ou daquilo que vai surgindo quando a porta se
abre.
Manhã e
noite, tudo a mesma coisa. A luta desperta ainda na madrugada. Não há
compromisso de trabalho, não há relógio de ponto no emprego, não há condução
com hora marcada, mas há sempre algo para ser feito. E a primeira é a prece, a
invocação ao sagrado por um dia com menos sofrimento e alguma conquista boa. Os
pedidos são poucos, também simples e humildes como o próprio povo. Depois abrir
a porta dos fundos, olhar para os sinais do céu e procurar reconfortar a alma
desalentada desde aquele momento. Joga uma cuia d’água numa planta, ajeita o
varal que caiu, imagina como seria bom se ali existisse uma goiabeira ou um
mamoeiro para colher uma fruta, e depois retorna para dentro de casa. Dali a
mulher não sai, pois não há feira nem compra a fazer, mas o homem logo estará
ultrapassando a porta da frente. Vai em busca do pão do dia. Mas onde e como?
Tal incerteza angustia e faz sofrer ainda mais.
O homem
sai e esquece a porta aberta. Mas tanto faz. Lá dentro a mesma sombra dos dias
fechados, sem sol. Reinventando sempre a sobrevivência, a mulher cata um grão
perdido, procura restos de nada. Nada encontra. A lenha num canto, o fogo
apagado, nenhum barulho de panela. Mas aos poucos é como se a fumaça escurecida
fosse avançando pelos arredores. Então as sombras aumentam e tudo ainda fica
mais triste. Apenas as cores da miséria na sua moldura viva.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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