*Rangel Alves da Costa
Como dito, os leilões rarearam, mas ainda
resistem num canto e noutro pelas vastidões sertanejas. Rareou quase tudo tão
costumeiro e tão tradicional noutros antigamente. Para uma ideia do
esvaziamento da tradição, até mesmo o forró autêntico, o chamado pé-de-serra,
do zabumba, triângulo e pandeiro, somente é possível ser avistado nas salas de
reboco mais afastadas da cidade e em ocasiões muito especiais. Tamanho
esquecimento perante os festejos modernos, fez com que em Poço Redondo, nos
sábados à noite, surgisse um local especialmente criado para que os mais velhos
possam dançar e chinelar até a canseira chegar.
As tradicionais novenas ainda são celebradas
em ocasiões especiais, principalmente nas semanas dedicadas aos santos ou
quando as secas se alastram e as forças sagradas são chamadas a agir. Agora em
número reduzido de beatas e outras devotas, escolhem as casas dos ofícios daquela
noite e pelas ruas seguem levando a imagem dos santos nas mãos. Durante nove
dias - daí o nome novena - as residências se preparam para receber o santo e
seus acompanhantes. Na cidade ou pelos arredores, uma mesinha é recoberta por
toalha branca rendada, sendo a imagem do santo colocada ao lado de um jarro de
flores, geralmente de plástico. O que importa é a fé, como dizem as velhas
senhoras enquanto entoam cantos e orações. As novenas são feitas para pedir uma
graça, para agradecer pela graça alcançada ou para louvar a Deus ou aos santos.
É, pois, através da fé, que a persistência de
um povo se mostra em maior vigor. As procissões, contudo, tão costumeiras que
eram noutros tempos, e mais de perto quando através delas se mostravam os
sacrifícios pela fé, hoje ganharam lugar de destaque nas datas festivas da
religiosidade, como quando das festas das padroeiras locais. Entretanto, em
épocas de estiagens mais prolongadas, quando os rogos do povo precisam ecoar
com mais força perante os santos, ainda é possível avistar pelas estradas
pequenas procissões a São Pedro, o santo das chuvas, e a São José, o protetor
dos sertanejos.
Mas tradições religiosas existem que, mesmo
com número cada vez menor de adeptos, ainda continuam pelos sertões. É neste
sentido, como se pedissem um dia dadivoso para todos, que logo aos primeiros
clarões do dia as beatas e outras senhoras se reúnem nas igrejas para rezas e
orações. Quem passar nas proximidades do templo católico certamente ouvirá:
“Ave Maria cheia de graça, o Senhor é convosco; bendita sois vós entre as
mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus. Santa Maria Mãe de Deus,
rogai por nós pecadores agora e na hora da nossa morte. Amém”. E a prece
cantada: “Dai-nos a bênção, ó Virgem Mãe, penhor seguro de sumo bem. Dai-nos a
bênção, ó Virgem Mãe, penhor seguro de sumo bem. Vós sois a rosa de puro amor,
encheis a terra de puro odor...”.
De suas vozes, e todas as vozes sertanejas,
as canções e os hinos tão sublimemente enaltecedores como tristonhos, eis que
também ecoados nos ofícios de despedidas, nas sentinelas e incelenças, como se
aquelas vozes fossem ecos de um além tão próximo de todos e a todos chamar à
reflexão da vida, da morte, da fé, da valorização das verdades cristãs. Assim
como o Ofício da Imaculada Conceição: “Agora, lábios meus, dizei e anunciai os
grandes louvores da Virgem Mãe de Deus. Sede em meu favor, Virgem Soberana,
livrai-me do inimigo com o vosso valor. Glória seja ao Pai, ao Filho e ao Amor
também, que é um só Deus em Pessoas três, agora e sempre, e sem fim. Amém...
Ouvi Mãe de Deus, minha oração. Toquem vosso peito os clamores meus... Sede em
meu favor, Virgem Soberana, livrai-me do inimigo com o vosso valor...”.
Enquanto isso, ainda dobram os sinos das
igrejas sertanejas ao alvorecer e ao anoitecer. Chama aos ofícios religiosos,
mas também anunciando despedidas terrenas. De rosário à mão, chega uma e mais
outra beata. A fé diminuiu em tamanho, mas não em louvação. E lá fora, da porta
da igreja adiante, as cidades vivem os seus dias sempre novos, tomados de
modernidade. Tudo parece fazer esquecer o jeito de viver de outros tempos. Uma
sofrência numa vitrola, uma canção brega nas alturas, uma voz que entoa uma
música qualquer. Mas por que assim, quando ainda há tempo de ser nova
preservando as profundas e tão belas raízes históricas, culturais e
tradicionais?
É que a cultura e a tradição do povo
sertanejo somente persistem sob algumas condições. Quando a força da tradição
vive no sangue familiar ou pela íntima abnegação, como ocorre com os Pífanos da
Família Vito e os cavalheiros, quando a beleza do folguedo começa a atrair e a
chamar os mais jovens, como ocorre com os grupos de xaxado, ou quando os
governos municipais criam grupos para preservação de manifestações culturais.
Somente em tais situações há que se falar em permanência do tão rico e vasto
patrimônio cultural sertanejo.
Entretanto, fator preocupante é saber se,
mesmo assim, haverá continuidade em tal processo de preservação. Criou-se um
descompasso tamanho entre o tradicional e o moderno que qualquer apresentação
de uma cavalhada, de um xaxado ou de qualquer outro grupo folclórico, acaba se
tornando em algo de grande estranhamento a muitos. Significa que o que era
costumeiro, hábito local, transformou-se em acontecimento excepcional. Muitos,
principalmente os mais jovens, ficam boquiabertos com as apresentações.
Desconhecem completamente suas raízes.
Observação: O presente texto foi
originalmente publicado na Revista Cumbuca, Ano V, n. 16, Aracaju/Edise.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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