SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



domingo, 14 de janeiro de 2018

UMA TARDE COM SEU JOÃO CAPOEIRA


*Rangel Alves da Costa


Em Poço Redondo, sertão sergipano. Na tarde deste sábado dia 13, ainda embaixo de sol brilhoso e calor de fornalha, atravessei a Praça da Matriz, segui adiante na direção da Avenida João Maria de Carvalho, e logo no outro lado já estava em território de Seu João Capoeira, morador de raiz desde que a Rua Francisco Xavier sequer tinha nome. Dizia-se apenas que pertinho do Riacho Jacaré.
Rua de paralelepípedo, árvores nos beirais das calçadas, gente sentada em cadeiras de balanço à espera da melhor ventilação do entardecer. Perguntei a um onde ficava a casa de Seu João Capoeira e este logo indicou: Ali naquela casa amarelada, de porta aberta, com árvore e a cadeira na calçada. Prontamente me dirigi ao local indicado, parei um instante à frente, fotografei, olhei porta adentro e não avistei ninguém. Já ia chamar pelo nome, quando percebi uma pessoa lentamente se encaminhando em direção à porta. Era ele.
“Seu João, boa tarde, como vai?”. Foi o cumprimento mais cordial que me veio à mente naquele instante, principalmente pelo fato de estar completamente absorvido pela imagem viva daquele homem tão importante na história de Poço Redondo.
Inicialmente, olhou-me como olharia para um estranho qualquer. Não me conhecia, eu ainda não o tinha informado minha origem de conterrâneo nem do meu tronco familiar. Aproximei-me um pouco mais e o ajudei na descida do degrau até a calçada, onde uma cadeira o esperava a todo instante. Estatura mediana, magro, vestindo camisa de manga longa esverdeada e calça entre o azul escuro e cinza, calçando havaianas, carregando na mão uma bengala, olhos profundos e atentos.
Naquele homem, naquela pele enrugada de tempo, naqueles olhos opacos de tanto sol e tanta lua, naqueles ouvidos já com dificuldades de ouvir, naquele passo lento e acompanhado do cajado da sabedoria, nada menos que 106 anos de vida sertaneja. Sim, mais de uma centena de anos no seu passo de mundo sertanejo. Seu nome de batismo: João Saturnino dos Santos, viúvo de Dona Alvaci Clementina dos Santos. Pai, avô, bisavô, tataravô de uma geração inteira.
Confessou-me que todos os seus irmãos já partiram e somente ele restava daquela raiz antiga. Seus irmãos, igualmente numerosos, também fazem parte dos anais da história poço-redondonse. Os de mais idade haverão de recordar de Seu Liberato (Libel), Minervino, Antonieta, Estela, José, Maria José (esposa de Mané França), Dona Céu. Os seus filhos são: Manoel, José, Elias, Maria, Genalva, Eva, Lúcia e Maria José. Por lá avistei a bisneta Maria Cecília, filha de sua neta Rejanne. Depois a pequena Cecília sentou no colo do bisavô para um singelo retrato.
Capoeira, por que esse apelido? Sua neta Daniela explicou-me. Assim como existe João Maralina, pois morador na Fazenda Maralina, também João Capoeira, pois muito tempo morador numa propriedade por nome de Capoeiras. Daí o nome João Capoeira. Mas foi Seu João que me confessou ter sido vaqueiro de Manoel do Brejinho, um dos potentados de Poço Redondo de antigamente, latifundiário e criador de rebanhos, e um dos responsáveis pelo progresso da então nascente povoação.
Seu João, na sua voz lenta, pausada e cheia de recordação, relatou-me ainda ter na memória as andanças de Lampião e seu bando pelo sertão. Amedrontava todo mundo, fazendo com que pessoas fugissem pelos matos ou preferissem refúgio na Serra Negra. Muitas famílias de Poço Redondo juntavam o que podiam e corriam para o outro lado da fronteira, para as terras do Coronel João Maria de Carvalho. E foi por isso, segundo Seu João, que certa feita viajou ao Rio de Janeiro. Não queria ir, mas a situação estava difícil no sertão cercado por cangaceiros e volantes.
As volantes eram muito desumanas, segundo suas palavras. O sertanejo se revoltava com tudo isso, e também por esse motivo se bandeava pro cangaço. Referindo-se a Zé de Julião, afirmou ser homem bom, corajoso, porém injustiçado. Era sertanejo de valor e que não devia sofrer o que sofreu. Quando perguntado se algum dia já havia pensado em entrar para o cangaço, afirmou que não, mas que não tinha muita saída não. Era muita violência no sertão, uma correria danada.
Dois fatos me despertaram maior atenção durante o proseado com Seu João. De vez em quando, tentando passar maior confiança e assim obter mais informações, eu repetia que era de Poço Redondo mesmo, filho de Alcino e Peta e neto de China e Dona Marieta, de Ermerindo e Emeliana. Então, numa das vezes, ao falar o nome Alcino, ele olhou-me fixamente, como que surpreendido, esboçou um sorriso e disse: “Filho de Alcino?”. Lembra dele, perguntei. “Muito, era muito meu amigo”. E então me olhou mais fixamente e por tempo demorado, para em seguida, com olhos brilhando, dizer: “Alcino”.
Em seguida perguntou-me: “Emeliana ainda é viva?”. Não, minha avó já faleceu, respondi. “Já morreu?”, ele insistiu na pergunta. E depois se mostrou mais entristecido e pensativo. Alcino já morreu e Emeliana também, disse por fim. E neste passo eu mesmo já estava entristecido demais ante aquelas recordações. Despedi-me prometendo voltar brevemente e reencontrá-lo ainda lúcido e com saúde.
Retornarei. Que Deus me permita reencontrá-lo na sua cadeira de sombreado, com sua memória e sua história.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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