*Rangel Alves da
Costa
Estou
triste, angustiado, com sentimento de culpa. Nunca antes havia acontecido nada
parecido comigo, mas a verdade é que ontem matei uma coisa. E matar, perante o
sentimento tão humanizado do coração, é como se perecesse também.
É como se
ainda me mantivesse na cena apavorante. Mas não havia sangue, não havia
ferimento, não havia grito, não havia gemido. Apenas a coisa morta, e pronto.
Apenas a coisa morta e o seu fim. E, na medida da dor, também o meu.
Mas a
verdade é que matei uma coisa. Gente eu tenho certeza que não foi, pois as
marcas do crime logo apareceriam. E certamente uma vítima testemunhando a
materialidade do fato. Minha dúvida é saber se gente também pode ser igualar a
coisa.
Tenho
certeza que o fato por mim praticado é consequência de um emaranhado de
situações insuportáveis que em mim passou a existir. Solidão, angústia,
saudade, tristeza, sofrimento, desilusão, desesperança, aflição, tormento.
Qualquer uma. Ou mesmo tudo.
Não era
assim, mas passei a ter noites insones, madrugadas dolorosas, manhãs ainda
anoitecidas. Nem chá ou veneno parece dar jeito. Preguei fita adesiva nos meus
olhos e foi pior. A escuridão iluminou-se e com e com a luz a chegada de mãos
avançando, dentes afiados sem boca, espadas de fogo e buquês de espinhos.
Daí em diante
eu nunca mais coloquei fitas sobre os olhos. Apago todas as luzes, fico na
completa escuridão, mas os olhos sempre abertos intimidam as assombrações.
Penso que seja assim. Com o passar das horas, com os olhos já feridos da
escuridão, nada mais enxergo senão brumas que vagam sem norte.
E foi
ontem, depois de mais uma noite assim, que eu matei uma coisa. Tento,
esforço-me, faço de tudo para saber o que realmente matei, mas por estar ainda
muito comovido pelo inesperado e infausto acontecimento, não consigo visualizar
a vítima na memória. Talvez uma inocente vítima.
Que fato
mais terrível de acontecer. Quais inimigos eu teria, quais as coisas que
poderia matar? Será que tenho tantos e tão graves motivos assim para matar uma
coisa? Ou simplesmente enlouqueci e matei qualquer coisa pensando que qualquer
coisa é a mesma coisa, e tanto faz?
Não. Não
estou louco. Os loucos não sofrem tanto, não se atormentam tanto pelas culpas
cometidas. Estou consciente de tudo, sei muito bem o que fiz. O problema todo
se resume apenas em saber qual a coisa que realmente matei. Ah, já sei! Só pode
ter acontecido isso...
Matei a
flor de plástico do jarro sobre a mesa. Ou será que matei a viva flor do
caqueiro do corredor? Gosto de flores e não mataria qualquer flor, mesmo de
plástico. Mas também não gosto de flor. Recordo muito bem que a flor do jarro
era para enfeitar a sala aos olhos dela. E que a flor do caqueiro esperava sua
entrada pela porta algum dia.
Pensando
assim, tenho até muitas razões para ter matado a flor e depois, no vão
angustiante da solidão, jogado seus restos pela janela. Mas já abri a janela e
nada encontrei do lado de lá. Estranho um crime sem vítima, mas sei que matei.
Lembro muito bem de minhas mãos afoitas, avançando violentamente, sufocando,
exaurindo as forças da coisa. Mas o que?
Doloroso
demais padecer assim. Gostaria agora de tomar um cálice de vinho. Mas matei a
taça e também a garrafa. Talvez eu me sentisse bem lendo um poema de Byron,
Schiller ou Florbela, mas matei o livro. Matei todos os livros. Poderia até
escrever um poema, mas matei o caderno, matei a folha, matei o lápis.
Matei o
retrato, matei a carta, matei o incenso, matei o travesseiro, o disco e a
vitrola, matei tudo o que pude encontrar no meio da noite. Matei tanta coisa
que eu amava e que não merecia morrer. Agora tenho que matar essa lágrima e
essa dor. E também a escuridão. E ficaria só.
Apenas uma
coisa solitária e só. A única coisa que me resta, na coisa que sou. E que não
sei se ainda existe.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Um comentário:
Forte!
Eu sou uma assassina de coisas. Coisas que já estão mortas.
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