*Rangel Alves da Costa
Estou desconhecendo a mim mesmo. Nunca mais
caminhei pelas estradas e ruas, de pés descalços, pelo prazer de pisar na
terra, sentir o calor do chão e estar mais aproximado do mais puro ventre.
Estou entristecido comigo mesmo. Nunca mais
abri a janela para esperar borboletas, para a chegada de colibris nem pássaros
do amanhecer. E sei que agora me falta aquele sorriso da flor e o beijo da
brisa do amanhecer.
Estou me sentindo desumanizado demais. Chego
a me perguntar se não perdi a sensibilidade, se não desacalantei o amor pelas
coisas simples, se não reneguei o prazer pela jabuticaba e a sapoti de
quintal. E tão doce era beijar a boca do
araçá.
Estou me distanciando de mim mesmo. Temo ter
deixado ir embora a criança que sempre esteve em mim, o menino traquina que
sempre gostou de brincar e de sorrir. Temo que até a memória e as doces
lembranças e nostalgias tenham se distanciado de mim.
Estou me tornando cada vez mais insensível, e
eis o medo maior que dá. Não desejo a lágrima petrificada nem o soluço preso,
não quero olhos sem brilho nem coração que não pulse mais perante as situações
de vida. E tudo parece simplesmente acontecer.
Estou sem tempo para as coisas boas da vida,
estou sem encorajamento para reencontrar as coisas boas da vida. Nunca mais
sentei na pedra, nunca mais conversei com a pedra, nunca mais deitei no colo da
pedra e sonhei com um jardim florido e perfumado.
Estou envelhecendo demais sem ainda ter
alcançado os portais da velhice. Imagino que os espelhos vão me negar o
sorriso, penso que os espelhos vão acrescentar minhas rugas, imagino que de
repente já serei outro, triste e alquebrado, num corpo apenas cansado.
Estou sem tempo de fazer o que sempre fiz
mesmo sem ter tempo. Sempre encontrei um instante para subir à montanha, para
sentar à beira das águas, para me aquecer com as brasas do pôr do sol. E sequer
tenho tido tempo de olhar o horizonte e imaginar o que está além e mais além.
Estou sem tempo de pensar nas coisas boas da
vida, de trazer ao pensamento o que sempre me confortou, ainda que com
saudades. É como se o sabor do café torrado já não mais esteja na minha boca, é
como se o perfume do café na chaleira já não estivesse ao meu alcance.
Estou sem auroras e entardeceres que realmente
sejam auroras e entardeceres. Não adianta apenas acordar, levantar e caminhar
pelo quarto, sem que pule a janela e vá logo beijar a primeira luz e o primeiro
sol. Não adianta chegar ao fim da tarde e perante o pôr do sol apenas fingir
que o avista.
Estou sem tempo para mim, sem tempo para ser
eu mesmo, sem tempo para fazer o que gosto e o que me faz bem. Preciso
conversar com o vizinho, falar com as pessoas que passem adiante, sentar na
calçada e conversar sozinho. Preciso jogar pedrinhas no meio do nada e riscar o
chão com uma varinha qualquer.
Preciso chupar picolé de graviola, de coco e
mangaba. Preciso pedir um algodão doce e uma maçã do amor. Preciso de pipoca
colorida e de cocada de rua. Preciso piscar o olho pra menina bonita que passa
de flor vermelha no cabelo. Preciso beijar a palma da mão e depois lançar o
beijar em qualquer direção.
Preciso riscar o tronco da madeira e nele
desenhar coração. Preciso escrever versos rimando amor e bilhetinhos com letras
miúdas e implorando ao menos um olhar. Preciso ler um livro do começo ao fim e
depois reescrever o mesmo livro do fim ao começo. Preciso abrir a janela.
Preciso abrir a porta.
Preciso também de um sorriso e de um espelho
que não negue as verdades, mas que não doa tanto nas suas verdades.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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