*Rangel Alves da Costa
Lá vem o velho carro-de-bois. Seu rangido
lento, seu canto dolente, seu remoer arrastado por cima do estradão, já não
deixa duvidar que lá vem o carro-de-bois. Na curva do caminho, tendo à frente
os bois na canga, lá vem o velho transporte sertanejo. Logo surgirá por
inteiro. Grande, imenso, tomando toda a estrada, ele vem rodando sem pressa.
Defronte seu casebre, casinha de cipó e barro
nas distâncias do mundo, o velho sertanejo revive tudo isso na memória. Aperta
os olhos, sente um gemido por dentro, mas não vai chorar. Já não chora mais. As
lágrimas que descessem desembocam e correm por dentro e somem. Na face apenas a
tez da agonia que a memória traz perante a recordação dos tempos idos.
O carro-de-bois se aproxima cada vez mais. Já
dá para avistar as feições dois bois que carregam o carro. Um de pelo amarelado
com pintas pretas, carnudo, sedoso, de olhos quase fechados pelo esforço do
peso e da viagem. Outro em tom mais marrom, de um amarronzado claro, forte
igual ao outro, parecendo até mais novo. Estes vão à frente e com dois mais
atrás. Um de pelo alaranjado, puxando a cor do barro da terra, e ainda outro
esbranquiçado. Todos cabisbaixos pela dureza imposta aos seus pescoços, lombos
e passos. Um sofrimento danado aos bichos.
O velho sertanejo ajeita o chapéu de couro,
em seguida lança mão de um cigarro de palha e o coloca pendurado no canto da
boca. Não acende no mesmo instante. Seu pensamento está longe, sua face
enrugada de tempo e de sol não nega. Abre mais os olhos e mira ao longe da
estrada. Tem certeza que ouve e avista o carro-de-bois, tem certeza que já vê o
velho carro sertanejo se aproximando, assim como noutros tempos fazia. Só que o
carreiro era ele. Era ele que conduzia o transporte matuto pelas lonjuras
sertanejas até retornar pela mesma estrada, entrar pela mesma curva e por ali
despontar para o descanso da luta.
Todo carro-de-bois tem um canto triste,
sofrido, agonizante. O toque pesado e firme da madeira no rolamento vai
provocando um rasgado, uma fricção calorenta e gemida, um arrasto cortante que
se transforma em verdadeiro gemido. Quanto mais a estrada é íngreme,
esburacada, com pontas miúdas de pedras ou pedrinhas soltas, mais o velho
transporte parece se arrastar como algo agonizante. Dependendo do peso, se em
cima madeira ou sacos de milho ou feijão, o canto pranteado vai se tornando
ainda mais aflitivo, como se os animais não fossem conseguir levar adiante
aquela sina de lento e pesado sofrimento.
O velho sertanejo se esforça para levantar.
Precisa ir um pouco adiante para saber se tudo não passa de ilusão. Esforça-se,
mas recua pelo pensamento que lhe toma por inteiro. A memória coloca à sua
frente o que jamais pensaria avistar novamente. Ele ainda moço, ainda na força
e na disposição da luta. Vai chamando um boi e outro, Pintado, Flor da Serra,
Mimoso e Lua Dourada, e vai perfilando adiante do carro-de-bois. Em cada um sua
canga, seu silêncio, sua cabeça já abaixada. Em seguida vai colocando em cima
do carro dois sacos de farelos e dois cestos de palma. Precisa fazer a entrega
mais adiante, ao compadre que já espera a encomenda. Então lança mão da vara do
chicote longo de couro cru e da vara de ferrão afiado e começa a viagem.
Os olhos do velho estão fechados, apertados,
molhados por dentro e deixando cair um filete de água pelas dobras da face. O
carro-de-bois se aproxima cada vez mais. Já passa pela malhada do casebre,
rente ao juazeiro de sombra grande, inteiramente diante da cadeira onde o homem
do sertão amarga sua dor na memória. Ao abrir os olhos, já não é mais aquele
carreiro à frente dos bois, levando na mesa do carro os sacos de farelo e os
cestos de palma, mas aquele retornado de outras viagens e agora, tomado de cansaço
pelas idas e vinda do tempo, apenas avista passado e presente diante de si. E o
mais espantoso ainda, coisa de não acreditar mesmo, é que o carreiro conduzindo
aquele carro agora avistado não é outro senão ele mesmo. E com estava naquele
momento, apenas um velho.
O velho não acredita no que vê. Não pode
acreditar que ali esteja um carro-de-bois, com aqueles seus bois de
antigamente, e nem que aquele carreiro possa ser ele mesmo. Faz o maior esforço
do mundo e consegue se levantar. Espantando, de feição indefinida na tristeza e
na alegria, sai como que tateando em direção ao carro logo adiante. Tudo está
ali, só um passo mais, só um tiquinho mais de caminhada, e por isso faz de tudo
para apressar o passo. Mas nunca chega. Nunca alcança o velho carro-de-bois.
Um chamado de dentro de casa o desperta
daquele sonho. Alguém diz que o cuscuz já tá pronto. Como demora, a esposa
segue até onde está e o encontra chorando. Pergunta o que foi e ele apenas
pergunta se ela está ouvindo o rangido do carro-de-bois que acabou de entrar na
curva da estrada. Nas curvas da memória.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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