*Rangel Alves da Costa
Os grandes feitos dos homens, ou mártires da
abnegação e da fé, são reconhecidos pela Igreja e tais feitos de desapego ao
mundano e devotamento religioso através da santificação. Mas não somente a
Santa Sé reconhece e erige pessoas à santidade, vez que pessoas, comunidades e
povos, também constroem altares àqueles que reconhecem como verdadeiras
santidades.
É pela fé, pela crença e pelo devotamento,
que o povo, principalmente o mais comum da sociedade, vai tornando seu mito
humano em santidade. Acontece muito isso na região nordestina do Brasil. De vez
em quanto se encontra uma cruz da donzela ou uma cruz do homem, sempre com a
presença de uma capelinha de refúgio e oração. Significa dizer que a donzela ou
o homem são acreditados e devotados como se santificados fossem. E não há como
afirmar que o povo esteja errado na sua concepção, vez que tudo nascido na
crença maior.
Os exemplos maiores, contudo, dizem respeito
aos reconhecidamente santos nordestinos, ainda que sem reconhecimento oficial
da Igreja. Padre Cícero Romão Batista, o tão conhecido Padim Padre Ciço do
Juazeiro, bem como o Frei Damião, se constituem nesta manifestação explícita da
fé íntima de um povo. O Santo do Juazeiro desde muito é devotado pelo Nordeste
inteiro e tido e havido como milagreiro e até como o maior dos santos. Sua
representação é tão forte que não há de se falar em religião nordestina sem
colocá-lo no pedestal maior de crença e devotamento. Depois de Deus, do Nosso
Senhor Jesus Cristo, a valia no Santo Padim, é assim que o povo se expressa.
Não obstante a santificação pelo povo
daqueles vindos da própria Igreja, como é o caso do Padre Cícero e do Frei
Damião, também altares erguidos aos beatos e beatas e seus milagres. Pessoas
oriundas das camadas comuns da sociedade, mas depois abraçados pela
religiosidade e pelas causas maiores da fé. Daí surgirem os beatos afeiçoados a
pastores e com dezenas ou centenas de seguidores. Daí as beatas ungidas pelo
sangue da fé e no além continuando como verdadeiras protetoras e milagreiras.
Como afirmado, não há como volver da mentalidade do povo outra noção de
religiosidade, principalmente de base científica.
Que não haja espanto com a santificação de
Luiz Gonzaga, de Patativa do Assaré, do Cego Aderaldo e tantos outros
dignificantes homens nordestinos. Basta o povo querer e não há como desfazer o
altar. Por isso mesmo que Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião,
cangaceiro maior dos carrascais nordestinos, passou a ser mitificado de tal
modo que, tantas vezes, vai muito além do herói para se firmar como verdadeiro
mártir dos sertões brasileiros. Seria, assim, um Lampião santificado pelo povo.
Por que a santificação pelo povo não exige
nada além da crença do próprio povo, certamente que o reconhecimento de seu
valor igualmente não exige sequer o conhecimento ou aprofundamento na sua
história, seu percurso de vida, seus feitos, seus males ou bondades. E muito
menos de sua religiosidade, hoje reconhecida como de devotamento aos santos e
principalmente ao Padre Cícero do Juazeiro. Basta apenas que o líder cangaceiro
seja visto pelo povo como injustiçado, perseguido, vitimado na sua luta. E tem
muita gente que pensa assim, que concebe a figura de Lampião como um mártir
nordestino.
Aqueles que pensam assim - e que, repita-se,
são muitos - são também aqueles que voltam das feiras interioranas trazendo no
embornal duas imagens de barro de igual valor: Padre Cícero do Juazeiro e
Virgulino Lampião. Nos seus entendimentos, duas imagens que merecem guarida nas
suas casas ou casebres de cipó e barro. E de repente, num ânimo espiritual sem
plausível explicação, e os dois passam a ser avistados até mesmo dentro de
oratórios. Mas, e urge que se saliente, também em muitas mansões e requintadas
moradias nordestinas, pelas paredes e móveis não se avista imagem alguma de
santo, mas a de Lampião está por todo lugar.
O sentido da santificação de Lampião pelo
povo não está, contudo, no seu poder milagreiro ou nos seus feitos religiosos
ou ainda de caridade, mas tão somente pelo poder de escolha popular de seus
mitos, seus heróis, seus protetores. O estudioso ou pesquisador, com cátedra em
heroicizar ou destruir, certamente possui argumento apropriado para dizer que
Lampião nunca passou de um reles bandido ou que foi um grande herói. Mas isto
não tem valia alguma àquele que simplesmente devota o Capitão. Para este, vale
o homem e não o que digam sobre ele.
E assim, como fez certa vez a Velha Titoca,
Lampião saiu da feira e foi fazer moradia diretamente no oratório. Ao lado das
imagens de santos da Igreja e de Padre Cícero e Frei Damião, que são os santos
nordestinos, o rei cangaceiro com sua imponência catingueira. Ao lado uma vela
acesa. E diante de tudo a velha sertaneja ajoelhada em oração: Que todo mal
seja desfeito pelo Padim Ciço Romão e pelo Frei Damião. Que toda injustiça seja
combatida por Virgulino Lampião.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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