*Rangel Alves da Costa
No mundo do Desmundo, o mundo existente só
tem razão de ser quando o seu povo já perdeu o poder de contradizer ou
contestar o que está revirado de pés à cabeça. Chega um tempo em que a
sociedade se torna tão alienada, tão submissa e escravizada perante
determinadas situações, que nem o fogo queima mais a pele nem a ponta de
espinho fere mais o pé. O que doer na alma se esta moldada à aceitação do
sofrimento?
É que o povo cria mundos estapafúrdios e vai
se acostumando com o extravagante, com o grotesco, até com a incoerência e a
irracionalidade. Quando não é um mundo criado pelo próprio povo, o mesmo passa
a ocorrer pela aceitação ou pela assimilação. Significa dizer que de repente
aquilo que seria absurdo perante outros mundos e outras realidades, afeiçoa-se
ao cotidiano, ao dia a dia de aceitação e de subserviência ou que foi concebido
com validade ou simplesmente imposto.
Desmundo, pois, é o mundo desse mundo já
chegado ao fim pela perda absoluta de reconhecer-se em seus valores ou de
buscar na anormalidade sua normalidade. Desmundo é fim de mundo, mas um estágio
final perceptível apenas pelos que estão de fora ou ainda não foram inseridos
naquela realidade. Eis que dentro desse mundo revirado, tosco, às avessas, os
sofrimentos são como suspiros de amor e as dores da alma são apenas prazeres
predestinações. Talvez algo parecido com um país que sequer se reconhece mais.
Quando Maurício Babilonia apareceu e foi logo
de porta adentro, trazendo um buquê de flores para Meme, e atrás de si um bando
de borboletas revoava em manto, ninguém disse nada, pois tudo tido como normal.
Quando a bela Remedios subiu aos céus num sorriso satisfeito como se viva
estivesse, ninguém disse nada, pois tudo tido como normal. Nada de anormal parecia
acontecer em Macondo durante os Cem Anos de Solidão.
O anormal ou o avesso em tudo, sempre será
visto como normal onde o seu povo assimila tal realidade. Não há espanto nem
surpresa se o mundo revirado pareça estar na posição mais correta. Assombro
causará se outra forma de repente surgir para dizer que não é assim, que tudo
está errado, que tudo tem de ser diferente. É como se os valores reencontrados
já não servissem perante os conceitos perdidos.
Quando a cidadezinha de Manarairema passa a
ser acometida por estranhíssimos acontecimentos, como a repentina chegada de
homens amedrontadores e carrancudos pelos arredores, mas principalmente quando
um monte de cachorros e bois invade a cidade e não quer convívio pacífico com
ninguém, o espanto de primeiro momento foi dando lugar à aceitação. Sabia que
não podiam fazer nada, pois fazendo parte das surpreendentes coisas da vida.
Depois, tanto os carrancudos como a matilha foi embora e tudo pareceu ter
voltado à normalidade. Mas aquele mundo criado por José J. Veiga em A Hora dos
Ruminantes já não era o mesmo.
Tudo surpreende no realismo fantástico de
Gabriel Garcia Márquez e de José J. Veiga, mas nada surpreende ao mundo criado.
Nada parece assustar, nada parece assombrar, nada parece amedrontar. Quando os
mortos ressurgem em Antares, na obra Érico Veríssimo, é como se aqueles
fantasmas apenas tomassem o lugar dos apáticos da sociedade, dos vivos omissos
e negligentes com a situação política e social de então. Surpreende ao leitor,
mas não ao contexto ficcional.
Ora, normal que um cachorro seja um ser
social e um homem apenas um bicho que late e ruge. Normal que um filho saudoso
do pai vá ao mundo dos mortos enquanto o falecido faz o caminho inverso e no
desencontro nada mais possa ser feito, ficando um no lugar do outro. Normal que
a moça só seja ouvida e compreendida em silêncio, pois se abre a boca e fala
ninguém entende nada. Normal que o cego ensine aos de luz no olhar as cores do
arco-íris, vez que estar de olhos abertos não significa a percepção de nada.
Tudo normal.
Entretanto, se patriarca dos Buendía ouvisse
que existe um mundo real onde tudo é diferente, logo diria: Desmundo! E na sua
exclamação o desconhecimento de que pudesse existir um mundo tão distanciado
daquele de Meme, de Mauricio, de Amarante, da bela Remedios, dele próprio, José
Arcadio Buendía. Mas um mundo de Maria, de Tonho, de Zé, de Zefinha, de
Bastião, de Lúcia, de Minervina. E todos vivendo acorrentados e constantemente
ameaçados por feras da pior espécie: a fera da política, a fera do poder, a
fera do mandato, a fera do autoritarismo, a fera do mando.
“Ah, então aqui é o paraíso!”, diria o
transtornado senhor de Macondo. Realmente, em comparação a Desmundo, eis que
Macondo parece mesmo um paraíso. Lá, naquela fantasia atabalhoadamente cativante,
apenas normalidades avessas, porém sem serem tão vergonhosas, estapafúrdias e
repugnantes, como a desse Desmundo afeiçoado a país. Sim, um país que chegou ao
seu desmundo na mais melancólica realidade.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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