*Rangel Alves da Costa
Como se fosse em outros tempos, ainda nos
idos mais ferrenhos do coronelismo nordestino, ainda hoje a imprensa de vez em
quando noticia o confronto sangrento entre clãs familiares, entre famílias
rivais, entre velhas e carcomidas raízes que nunca se deram bem com outras
ervas daninhas. Resultado: mortes de lado a lado, sangue escorrendo por cima e
debaixo dos sobrenomes, chacinas e vinganças que parecem nunca ter fim.
Em tudo, a feição mais terrível e tacanha da
discórdia nascida, muitas vezes, de uma disputa qualquer, mas que depois vai se
firmando como inimizade de sangue, como ódio profundo, como aversão odienta. E
toda a linhagem familiar – queira ou não – tem de abraçar esse ódio e levar
consigo a visão do outro como seu maior desafeto. Por que o avô era inimigo,
então o neto tem de nascer e crescer já propenso ao ódio e à discórdia. E assim
de geração a geração, tanto de um lado como do outro.
Assim ocorreu pelo Nordeste inteiro. Havia
situações onde pessoas de uma família ou que carregassem o mesmo sobrenome
familiar, sequer podiam ultrapassar determinados limites dentro de uma mesma
povoação. E se dizia que naquela rua ninguém de determinada linhagem podia
pisar, sob pena de ser logo alvejado. Do mesmo modo, se o desafeto mais afoito
adentrasse no reduto do outro clã familiar, certamente se tornaria mais um na
estatística das mortes pela honra familiar. Mas daí se indagar: que honra é
essa onde o preço é sempre a desonra do outro pela morte sangrenta?
Fato é que os jornais de hoje ainda estampam
os absurdos: “Famílias reacendem suas rixas e colocam em polvorosa toda a
povoação”, “Famílias rivais novamente acertam contas e deixam um saldo de
mortes de lado a lado”, “Os clãs se digladiam e o sangue corre solto pelas ruas
e pelas estradas”. De vez em quando é possível encontrar manchetes assim. E o
pior é que, muitas vezes, como as pessoas – ainda que não façam parte das
famílias rivais – tomam partido para um ou outro lado, igualmente acabam se
tornando vítimas das cegueiras do ódio. De repente, toda uma cidade está
vivendo e convivendo com o mesmo terror.
As raízes disso tudo? Sempre o poder, a
posse, a conquista, o mando, a sujeição do outro. Na busca e no alicerce do
poder é que está o nascedouro de toda rixa, todo o ódio e toda vingança. O
poder nunca gosta de dividir poder com ninguém. O poder é soberbo, é egoísta, é
prepotente, sempre quer tudo e mais e mais para si. E no poder está o mando,
que é a concretização maior da posse sobre tudo, sobre a terra, sobre o bicho,
sobre o homem. Contudo, como nunca existe um só senhor que a tudo deseja
abarcar, então tem início as desavenças, os ódios, as vinditas, as guerras. E
pelo nome daqueles senhores guerreando entre si, acorre toda a família, todo o
clã familiar. Então é a guerra sem fim.
Tendo nas mãos o poder e o mando como forma
de concretização dos mais escusos desejos, então os senhores donos do mundo
logo buscam formalizar suas intenções de mais poderes através da política. Ora,
a política ressoa como a oficialização do mando e da submissão. E quando se tem
necessidade de, a todo custo, manter o poder político, então é que as armas
mais escusas e abomináveis passam a ser utilizadas. Não se fala aqui em
clientelismo ou assistencialismo, mas no uso da força e da violência para
manutenção do império político e eleitoral. É onde entra a pistolagem.
Política e pistolagem são duas pestes que se
comungam e se digladiam desde os tempos antigos. Ou desde quando a ascensão
política ou a manutenção do poder exige a desmedida ação de submeter o outro,
ajoelhando-o aos anseios nefastos do mando. Como o outro nem sempre se submete,
pois igualmente aspirando ao mesmo poder e o mesmo mando, então o confronto se
perfaz com e por todos os meios, principalmente da violência das armas.
A
verdade é que cada período eleitoral reabre feridas, vai reacendendo mágoas
adormecidas, e tudo volta a desandar, ainda que jamais tenha havido
pacificidade entre os pleiteantes. As rivalidades aumentam, as ameaças também,
e os crimes quase em igual proporção. Quem perde nunca aceita a derrota, sempre
prometendo vingança de todo jeito. E por isso mesmo vitoriosos e derrotados
continuam em cima do mesmo palanque de guerra, mirando o outro.
E é assim nos tempos modernos. A guerra de
hoje não é mais por limites de terras nem por desavenças banais, mas sempre
tendo o poder político como honra maior a ser defendida. Já não se recorre a
jagunços ou capangas assalariados, mas a pistoleiros de aluguel ou mesmo pelos
próprios membros das famílias. Tudo em desmedida sede de sangue. E para as
cruzes que vão surgindo em cemitérios também rivais, pois até os mortos são
separados pelo ódio.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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