*Rangel Alves da Costa
Depois de limpar a espingarda de cano duplo, arma
já desgastada de tanto derrubar gente, o jagunço passou a língua por cima de
uma palha de milho, espalhou um pouco de fumo picado, ajeitou o cigarro nos beiços,
juntou tudo no cuspe, e começou a baforar depois de aceso. E no seu pensamento:
“Coroné acha que a gente é bicho, num é gente
não. Dá uma orde e adespois cospe no chão e dizeno que em tanto tempo quer o
seuviço já feito, cuma se matar gente fosse como atirar pedra em passarim. Tô
cansado dessa vida matadera...”.
O próprio Bicho Feio, cujo primeiro nome de
batismo era Menelau, achava-se um asqueroso naquele serviço de matar gente que
tanto fazia. Desde novo que outra coisa não fazia senão tocaiar, emboscar,
derrubar gente. Já se sentia envelhecido e queria ter outra vida, poder ter uma
velhice - acaso a ela chegasse - mais desaperreada. Mas as circunstâncias da
vida foram lhe afiando cada vez mais o gatilho.
“Guento mais não. Num sei nem mais o que é vida.
Num tenho famia, num tenho amigo, num tenho sequer um pedacinho de chão.
Certamente num vô tem nem quano morrer. Quano muito uma cova rasa cum uma cruz
pra descanso de urubu. Mai tomem pru merecimento meu. Quantas vidas eu já
deixei estrebuchada no meio do tempo, na morte largada pra ser comida de
carcará, gavião e arubu?”.
Bicho Feio dizia a verdade sobre si mesmo.
Mais de vinte anos matando gente a mando do Coronel Pafôncio Limoeiro e sem
jamais ter juntado qualquer dinheiro que dissesse que era seu. Comia do que era
dado, dormia por cima de cama dura em verdadeira senzala da pistolagem. Era
como se fosse um bicho criado para a serventia do mal. O pior é que ele mesmo
sabia o destino daquele que se desgarrasse dessa vida. Morte certa.
“Vida de arubu. Isso sim. Um carcará, um
gavião. Isso sim. Viver do sangue dos outo e adespois nem ter vida pra viver.
Isso é vida não. Mardito o dia que puxei o primeiro gatio, mardito o dia que eu
fiz a arma cuspir fogo pelas venta. O pior é que fui acostumano, feito um mardito
desgramado, a puxar gatio mais gatio, a soprar no cano da arma adespois de o
seuviço feito. Coisa de arubu. Pelo mado dos outo, puxar o gatio, pipocar fogo
e adespois revirar o baleado pra ver se a morte matada tava matada mermo. Faço
isso mai não, de jeito nenhum. Coroné pode até me matar, mas um mando desse num
faço mai de jeito nenhum...”.
Em seguida se levantou e foi em direção ao
casarão do coronel. Estava estranho demais, nervoso, afobado, porém triste. E
numa tristeza jamais vista naquele seu semblante impassível e duro, naquele seu
olhar sempre petrificado e sem luz. Parou um pouco dos lados da entrada, cuidou
de preparar outro cigarro e se ajeitou por detrás do tronco de um tamarineiro.
Fumava e cavoucava o chão como cavalo arreliento. Puxava uma arma, cuspia no
cano, limpava nos panos da roupa suja, depois guardava para fazer o mesmo com a
outra. Teria enlouquecido?
Então saiu de onde estava, deu alguns passos
adiante, mirou a direção da entrada do casarão e seguiu. Contudo, imediatamente
recuou quando avistou uma sombra passando do outro lado, esgueirando-se pelo
oito do casarão. Deu meia volta, segurou nas mãos as duas armas, lançou seu
olhar de predador e avistou um jagunço do coronel inimigo de seu patrão,
forçando um cano de arma por uma fresta na janela. E ali era a sala onde seu
patrão costumava ficar bebericando e tramando maldades. E ele ia ser morto se
não fizesse alguma coisa.
Então Bicho Feio levantou a arma. Mirou na
direção do afoito matador, já ia apertar o gatilho quando pensou: “Ora, se eu
ia matar o coroné, e outro veio fazer o mermo. entonce deixe que ele derrube a cobra
veia”. Mas já no outro segundo, seu dedo puxou o gatilho e acertou em cheio o
desaforado jagunço. Num berro, o tiro certeiro, o corpo ensanguentado ao chão.
Não havia outra coisa a fazer. Honra de matador que, mesmo odiando o seu patrão,
ainda assim continuava o seu jagunço.
Sina de jagunço é triste. Viver da morte.
Morrer no ofício e sina. Sem recuo, sem tempo para se redimir.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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