*Rangel Alves da Costa
Outro dia, aqui mesmo nesta página, sempre
levado pela convicção do que escrevo ou pela falsa memória que de repente
surge, eis que acabei cometendo um deslize imperdoável. Ou perdoável,
considerando-se as circunstâncias de quem tanto escreve. Fato é que citando o
autor do romance regionalista A Bagaceira, acabei trocando os nomes e tornando
o texto numa verdadeira bagaceira, ou bagaçada, melhor dizendo. Ao invés de
citar José Américo de Almeida, o que fiz foi nomear e repetir José Lins do
Rego. O contexto da trama, junto à moldura da paisagem do desenrolar dos fatos,
certamente me fez trocar de engenho.
Somente depois de uma ligeira olhada no texto
é que percebi a confusão. Então fiquei me perguntando como eu poderia ter
cometido tal deslize se desde os tempos de ginásio eu já havia enveredado nas
lições de literatura brasileira e muito aprendido sobre o romance regionalista.
E depois me tornei assíduo leitor de todos eles. Na minha estante tenho não só
José Américo de Almeida como José Lins do Rego, mas também Guimarães Rosa,
Graciliano Ramos, Érico Veríssimo e tantos outros. Então, com a recordação do
enredo, envolvendo engenho e aquela labuta servil e desumana, logo me veio à
mente Lins do Rego e o seu Menino do Engenho. E levei o mundo da cana e do
bagaço deste para A Bagaceira de José Américo.
Um erro, pois, lamentável verdadeiramente imperdoável,
porém sempre comum acontecer no mundo da escrita. Não há escritor que não
cometa deslize, não há autor que não erre na pressa de produzir o seu texto.
Nem sempre com tempo de reler, checar, de pesquisar para averiguar datas, nomes
e situações, eis que acaba trocando tudo. O pior é que parece uma cegueira
total do escritor ante o seu escrito. Outra pessoa logo encontra o erro, logo
aponta as falhas, mas não o próprio autor. Pode ler e reler, soletrar, mas não
tem jeito. O olhar de quem escreve parece enxergar somente aquela primeira
escrita, e esta sempre correta, ainda que toda desvirtuada. Comigo é assim e
creio que com muita gente também.
Certa feita, numa gráfica, ouvi que o
escritor, pesquisador e folclorista sergipano Luiz Antônio Barreto sempre dizia
que evitava o máximo corrigir sua própria escrita, vez que não adiantava.
Passava os olhos pelos erros da escrita sem a menor percepção de qualquer
deslize. Ou pedia para alguém corrigir ou publicava sua obra do mesmo jeito que
havia nascido. Talvez seja por isso que atualmente poucos são os escritores que
escrevem sozinhos. Sempre há algum auxiliar até mesmo para reescrever. O grande
Jorge Amado, temendo ser traído pela memória, ia pregando pedacinhos de papéis
por toda a sala onde costumava escrever. Ali nomes, características, datas,
situações, de modo que não fosse preciso perder tanto tempo em buscar os
nascedouros de suas personagens e tramas.
Tudo talvez seja causado pela síndrome da
suposição do pleno conhecimento dos fatos. Ou ainda pela traição da própria
escrita. Ora, toda vida eu soube que o cangaceiro Canário era companheiro da
cangaceira Adília. Do mesmo modo, sempre tive conhecimento que o cangaceiro Zé
Sereno era companheiro de Sila, também cangaceira. E conheci tanto Adília como
Sila, pois minhas conterrâneas de Poço Redondo. Contudo, em mais de um escrito
eu troquei tudo, dizendo que Canário era companheiro de uma e que Zé Sereno
convivia com outra. O erro só é revelado depois, quando algum leitor mais
arguto logo desmente o fato. E aos outros, quase sempre, a sensação de falta de
conhecimento de quem escreveu. Uma incompreensão sempre havida.
Será que quem comete tais equívocos pode ser
chamado de desconhecedor da história, da literatura ou dos fatos? Aos olhos dos
outros sim, principalmente por que todo leitor sempre espera que a informação
repassada seja correta. Não sabe, contudo, os labirintos mentais que acabaram
invertendo os fatos e repassando o que está incorreto. As armadilhas são tantas
que até o computador acaba atrapalhando ao invés de ajudar. As correções
ortográficas podem provocar danos irreparáveis, pois vai criando palavras por
conta própria e modificando todo o sentido do texto. João Guimarães Rosa
certamente sofreria perante o computador. Praticamente todo o seu texto seria
tido como incorreto senão todo transformado ao bel-prazer da máquina.
Em recente livro em coautoria, ao invés de
escrever “deste o século XVIII”, acabei cunhando “deste o século VIII”. Um erro
imperdoável e repassado à minha frente por um leitor. Então me pergunto, por
que, sobre o mesmo fato eu sempre escrevi corretamente, afirmando ter sido a
partir do século XVIII e daquela vez rescrevi de acrescentar algo essencial? Com
o livro publicado, a impressão que fica é de apenas ter errado. Como de fato,
mesmo sem querer, aconteceu. Dizem, então, que a revisão se faz necessária.
Sim, mas nem mesmo os jornais com revisores deixam de trazer notícias
atravessadas e até ilegíveis. São as tramas da escrita, apenas.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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