*Rangel Alves da Costa
Durante a primeira manhã do Cariri Cangaço
Poço Redondo, na visita feita à povoação ribeirinha de Curralinho, enquanto os
palestrantes Oleone Coelho Fontes, Carlos Alberto e Wescley Rodrigues, lá no
alto da calçada da igrejinha de Nossa Senhora da Conceição, debatiam sobre os
caminhos do mito Antônio Conselheiro, eu ficava imaginando os exatos momentos
em que os seguidores do Conselheiro juntavam forças para edificar em maior
grandeza os já existentes alicerces daquele pequeno templo cristão.
E que viagem mental a minha. Numa viagem
distante, avistando o Conselheiro e seu cajado, vendo o santo empoeirado
lançando o olhar ora para a pedra e a massa de visgo sertanejo ora para a
mansidão das águas do Velho Chico correndo adiante. E pelo São Francisco havia
chegado ali, vindo das Alagoas, descendo na ribeira e depois seguindo pelo chão
sergipano até alcançar a Bahia, em direção ao seu reino encantado. Vencendo os
sertões hostis, abrindo veredas, mas primeiro cuidando dos cemitérios, das
casas de oração, das moradias pobres e onde houvesse uma cruz pendente ou deteriorada.
Sem adentrar nas linhas teóricas e acadêmicas
sobre Antônio Conselheiro, prefiro fazer do imaginário uma possível percepção
daquela realidade. Como já dito em escritos e mais escritos, o Conselheiro e
seus seguidores formavam, pelas estradas e por onde chegassem, um verdadeiro séquito
de causar estranheza e apavoramento. De repente surgido pelos caminhos a
esbaforida procissão, tendo à frente o cajado levantado em voz alta, profética
e revoltosa, pacífica e tão guerreira.
Um Santo Sujo, para alguns. Um Profeta Insano,
para outros. Um Andarilho da Fé ainda para outros. Um Missionário para tantos
outros. Pouco importa a denominação. O Conselheiro, alto, esguio, de roupão
sempre sujo da poeira dos dias e da falta de asseio pela caminhada, cabeludo e
desgrenhado, barbudo e malcuidado, parecia um espantalho gigante ao erguer na
sua mão o cajado da fé e do ódio e ao levantar a voz para ferir dragões da
política e do Estado. Profeta, Santo, Louco, Missionário, tanto faz. Não mais
apenas um Conselheiro, mas a determinação em pessoa, ainda que incompreendida.
De sua loucura ou sanidade nasceu um sonho. E quando brotado em meio aos
sertões, logo o dragão devorador chegando para tudo dizimar.
E aqueles fiéis sem destino e sem pátria,
esfarrapados, tantas vezes famintos, mas sempre alimentados pelas palavras de
um calado em fúria e devoção? Homens e mulheres fugidos das secas, fugindo das
injustiças, fugindo dos desatinos, alargados pelo mundo em busca de uma
promessa de redenção. Segundo o cajado, aquela não era a vida que mereciam.
Mesmo na pobreza, mereciam viver na justiça e sendo donos de seus próprios
destinos. A redenção resguardada para depois, vez que antes tinham que cruzar
os sertões para anunciar as boas-novas da salvação. E assim pisaram em
espinhos, deitaram debaixo da lua, igualmente foram tomados por insanos,
loucos, uns bichos que seguiam a loucura e seu cajado.
O ano era 1874. Como dito acima, o
Conselheiro e seus fiéis atravessaram o São Francisco vindos das Alagoas e
pisaram às margens ribeirinhas da pequena povoação de Curralinho, atualmente
pertencente ao município sergipano e sertanejo de Poço Redondo. Seu destino era
a Bahia, entrecortando os sertões sergipanos. Foi nesta cruzada que abriu uma estrada
desde a beira do rio até as terras de Serra Negra, na Bahia. Onde antes havia
somente mata fechada e perigosas veredas, um caminho mais seguro passou a
existir. Ainda hoje a estrada de Curralinho faz a ligação entre a cidade e a
beira do rio. E mais recentemente com a denominação de Estrada Histórica
Antônio Conselheiro.
Pois bem. Assim que o Conselheiro colocou os
pés na beirada do rio, certamente que avistou uma capelinha erguida de forma
muito rudimentar. Com efeito, a capelinha já estava erguida desde os primórdios
da povoação, tendo no seu interior sepulturas que datam de calendário anterior
à chegada do Conselheiro. Contudo, apenas uma frágil construção de fé e
tendente a se deteriorar sem o devido reparo desde os seus alicerces. E foi então
que aos fiéis missionários coube o ofício da reconstrução. Pedras não faltavam,
areia e barro também não, água em profusão, e mais o restante que foi sendo
juntado com os moradores de então.
Então, durante a palestra de Oleone, Carlos
Alberto e Wescley, todo o tempo fiquei imaginando aquele cajado de fé e de luta
ordenando o lugar da pedra, o lugar do barro, toda a cimentação. Mãos rudes,
magras, ossudas, calejadas das andanças do mundo, mas persistentes e
resistentes ao fincar na terra a cruz da fé de um povo. E lá do alto o
Conselheiro impávido, imenso em sua obstinação, abençoando a vida e depois
apontando por onde deveriam seguir sertões adentro. Até o mundo Canudos.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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