*Rangel Alves da
Costa
Assim
mesmo como se lê acima, O Mysteryozo Myztério no Calango Que Queria Avoar, é
como estava escrita no cordel pendurado no barbante. Em meio a uma diversidade
de livretos com histórias de príncipes apaixonados, reis tiranos e sagas
cangaceiras, sobressaia-se, pendurado no lugar mais visível o cordel mais
conhecido do poeta matuto Trancosim de Biribeira.
Trancosim
de Biribeira era cordelista reconhecido sertões adentro e toda a região
nordestina. Tanto escrevia versos matutos como dedilhava na viola repentes e
cantorias. Ainda muito relembrada é a sua peleja com Beija-Fulô do
Encantamento, feito que durou três dias e três noites. E sem vitorioso, pois
todo o corpo de jurado foi encontrado a sono solto de a baba descer pelos
cantos da boca.
Biribeira
levava o seu tempo entre a escrita cordelista e a peleja repentista, sendo
muito difícil encontrá-lo sem estar absorvido nos seus singelos afazeres, mas
bastava encontrar uma folga e lá ia o homem armar sua barraca de feira e
pendurar barbantes para expor seus livretos de histórias tantas. O mais famoso
e procurado outro não era senão o já mencionado O Mysteryozo Myztério no
Calango Que Queria Avoar.
Para
chamar freguês, Biribeira prendia um velho e rouco microfone sem fio perto do
colarinho, lançava mão de uma viola e começava a cantarolar, à moda compassada
dos repentes, trechos e mais trechos do seu cordel mais famoso. E assim o
misterioso mistério no calango que queria avoar ia ecoando por toda a feira,
num chamariz de clientes. Eis os versos famosos:
“Era uma
vez um calango que acismou de avoar. Pensou que era passarinho e nos altos quis
chegar. Subia na pedra grande e lá em riba a matutar. Queria saber se pulando
nas alturas ia chegar, na brancura da nuvem passear até o céu visitar...”.
Padre
Torquato, admirador inigualável do cordel, deixava na hora o que estava fazendo
para ir ouvir Biribeira no seu versejar. Já sabia tudo de cor e salteado, porém
se achava no dever de mais uma vez se encantar com aquela inteligência matuta.
Pedia uma lapada de cachaça com raiz de pau e colocava seus ouvidos em máxima
atenção para ouvir:
“Mas o
calango, coitado, depois se via estropiado. Pulava para subir e se via
descompassado, e o que era para o alto, no chão caía arribado. E depois se
levantava choroso do acontecido, maldizendo toda a sorte de um calango assim
ferido, que só queria avoar como um passarinho atrevido...”.
Padre
Torquato chegava a lacrimejar perante a desdita do pequeno lagarto sertanejo.
Mesmo conhecendo começo e fim da história, sempre torcia para uma mudança de
situação, de modo que o voo do calango enfim pudesse ser realizado. Mas...
“Dez vezes,
cem vezes assim, o calango lá na pedra e o seu sonho sem fim, só queria avoar
feito anjo querubim, bater asas no espaço, planar feito um passarim. Até que um
dia acismou que a hora era chegada, que naquele mesmo dia dava fim à empreitada,
pois um calango teimoso não desfazia a jornada...”.
Neste
passo, Padre Torquato sentiu diferença na narrativa e até se espantou. Pediu
mais uma talagada e se aproximou ainda mais para ouvir aquele que talvez fosse
o desfecho tão esperado ao persistente rastejante sertanejo. Nervoso, ávido
para ouvir, bebeu também das palavras do poeta Biribeira:
“Então o
calango afoito subiu no alto mais alto. Tinha certeza de ter asas e comprovaria
no salto. Chegou lá em cima e orou, pediu a todo santo proteção, mas quando de
lá se jogou seu destino foi o chão. Caiu já sem vida na terra, e sem voar a
história do calango se encerra”.
“Não, não”,
gritou o sacerdote enfurecido. “Exijo, sob pena de lhe excomungar agora mesmo,
que dê outro final à história. Ora, quem já se viu um bicho sofrer tanto por
causa de uma vontade de voar e terminar assim esborrachado no chão. Não, não,
cuide logo de resolver o problema Seu Biribeira”. Então o repentista se viu sem
saída e ajuntou:
“Quando o
calango caiu uma revoada ia passando, um monte de passarinho no horizonte
voando. Com piedade do bicho, a passarinhada voltou, recolheu o calanguinho e
sobre as asas botou, depois seguiram com ele lá pro céu que Deus criou. Mesmo
já morto o calango, seu sonho realizou”.
Comovido,
e já mais pra lá do que cá por causa da pinga, ali mesmo o Padre Torquato
celebrou missa de encomendação de alma do calango sertanejo. E, a partir de
então, Biribeira teve que mudar a escrita do cordel do calango que queria
avoar. Ordem de Roma, segundo o padre.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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