SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O MYZTERYOZO MYZTÉRIO NO CALANGO QUE QUERIA AVOAR


*Rangel Alves da Costa


Assim mesmo como se lê acima, O Mysteryozo Myztério no Calango Que Queria Avoar, é como estava escrita no cordel pendurado no barbante. Em meio a uma diversidade de livretos com histórias de príncipes apaixonados, reis tiranos e sagas cangaceiras, sobressaia-se, pendurado no lugar mais visível o cordel mais conhecido do poeta matuto Trancosim de Biribeira.
Trancosim de Biribeira era cordelista reconhecido sertões adentro e toda a região nordestina. Tanto escrevia versos matutos como dedilhava na viola repentes e cantorias. Ainda muito relembrada é a sua peleja com Beija-Fulô do Encantamento, feito que durou três dias e três noites. E sem vitorioso, pois todo o corpo de jurado foi encontrado a sono solto de a baba descer pelos cantos da boca.
Biribeira levava o seu tempo entre a escrita cordelista e a peleja repentista, sendo muito difícil encontrá-lo sem estar absorvido nos seus singelos afazeres, mas bastava encontrar uma folga e lá ia o homem armar sua barraca de feira e pendurar barbantes para expor seus livretos de histórias tantas. O mais famoso e procurado outro não era senão o já mencionado O Mysteryozo Myztério no Calango Que Queria Avoar.
Para chamar freguês, Biribeira prendia um velho e rouco microfone sem fio perto do colarinho, lançava mão de uma viola e começava a cantarolar, à moda compassada dos repentes, trechos e mais trechos do seu cordel mais famoso. E assim o misterioso mistério no calango que queria avoar ia ecoando por toda a feira, num chamariz de clientes. Eis os versos famosos:
“Era uma vez um calango que acismou de avoar. Pensou que era passarinho e nos altos quis chegar. Subia na pedra grande e lá em riba a matutar. Queria saber se pulando nas alturas ia chegar, na brancura da nuvem passear até o céu visitar...”.
Padre Torquato, admirador inigualável do cordel, deixava na hora o que estava fazendo para ir ouvir Biribeira no seu versejar. Já sabia tudo de cor e salteado, porém se achava no dever de mais uma vez se encantar com aquela inteligência matuta. Pedia uma lapada de cachaça com raiz de pau e colocava seus ouvidos em máxima atenção para ouvir:
“Mas o calango, coitado, depois se via estropiado. Pulava para subir e se via descompassado, e o que era para o alto, no chão caía arribado. E depois se levantava choroso do acontecido, maldizendo toda a sorte de um calango assim ferido, que só queria avoar como um passarinho atrevido...”.
Padre Torquato chegava a lacrimejar perante a desdita do pequeno lagarto sertanejo. Mesmo conhecendo começo e fim da história, sempre torcia para uma mudança de situação, de modo que o voo do calango enfim pudesse ser realizado. Mas...
“Dez vezes, cem vezes assim, o calango lá na pedra e o seu sonho sem fim, só queria avoar feito anjo querubim, bater asas no espaço, planar feito um passarim. Até que um dia acismou que a hora era chegada, que naquele mesmo dia dava fim à empreitada, pois um calango teimoso não desfazia a jornada...”.
Neste passo, Padre Torquato sentiu diferença na narrativa e até se espantou. Pediu mais uma talagada e se aproximou ainda mais para ouvir aquele que talvez fosse o desfecho tão esperado ao persistente rastejante sertanejo. Nervoso, ávido para ouvir, bebeu também das palavras do poeta Biribeira:
“Então o calango afoito subiu no alto mais alto. Tinha certeza de ter asas e comprovaria no salto. Chegou lá em cima e orou, pediu a todo santo proteção, mas quando de lá se jogou seu destino foi o chão. Caiu já sem vida na terra, e sem voar a história do calango se encerra”.
“Não, não”, gritou o sacerdote enfurecido. “Exijo, sob pena de lhe excomungar agora mesmo, que dê outro final à história. Ora, quem já se viu um bicho sofrer tanto por causa de uma vontade de voar e terminar assim esborrachado no chão. Não, não, cuide logo de resolver o problema Seu Biribeira”. Então o repentista se viu sem saída e ajuntou:
“Quando o calango caiu uma revoada ia passando, um monte de passarinho no horizonte voando. Com piedade do bicho, a passarinhada voltou, recolheu o calanguinho e sobre as asas botou, depois seguiram com ele lá pro céu que Deus criou. Mesmo já morto o calango, seu sonho realizou”.
Comovido, e já mais pra lá do que cá por causa da pinga, ali mesmo o Padre Torquato celebrou missa de encomendação de alma do calango sertanejo. E, a partir de então, Biribeira teve que mudar a escrita do cordel do calango que queria avoar. Ordem de Roma, segundo o padre.


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: