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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

A POBREZA FAMINTA


*Rangel Alves da Costa


Basta visitar as distâncias interioranas, principalmente na região nordestina - e mais de perto a sertaneja - para conhecer a fome em toda a sua largueza, toda a sua feiura e atrocidade. Famílias inteiras na desvalia desde o amanhecer ao anoitecer. E seja pela miséria endêmica ou pela ocasional advinda com o prolongamento das estiagens.
No caso da pobreza endêmica, onde a situação de vida se torna de miserabilidade pela falta de emprego, de alimentação e de políticas públicas eficientes, o que se visibiliza é a penúria social, a conflagração de todo os tipos de enfermidades, a desnutrição, a ausência de dignidade na sobrevivência e a desesperança em meio a um sistema que só tem olhos para as classes sociais mais abastadas. Neste caso, falta o pão, falta a água, falta a saúde, falta qualquer moeda.
Com relação à pobreza provocada pelas secas e estiagens, há que se dizer que em situações tais os problemas apenas se agravam, pois a situação de miséria é preexistente a qualquer condicionante climática. Quando as secas se alastram, os sofrimentos são maiores por que além do sustento familiar ainda mais comprometido pela falta de qualquer colheita, há também o bicho para ser cuidado e mantido em pé. Cria-se uma situação onde ao homem falta a comida de mesa e ao bicho a comida de pasto.
O quadro de pobreza continua tão dantesco que não se pode imaginar que os programas sociais levados a efeitos pelo governo federal alcancem sequer a metade da população sertaneja em situação de extrema pobre ou de miséria absoluta. E assim por que não é difícil de encontrar - até mesmo nas cidades - pessoas ainda passando fome dias seguidos. Casebres ou barracos onde as crianças magricelas sequer possuem um resto de farinha ou farelo de pão.
Conheço muitas situações assim por que nasci e convivo num município sertanejo que por muito tempo já foi exemplo de miserabilidade absoluta. Possuía o menor índice de desenvolvimento humano, o analfabetismo imperava, as condições de vida da maioria da população eram as piores possíveis. Tal quadro não mudou, apenas melhorou. E do que há é fácil constatar a fome que ronda por todo lugar, as silenciosas necessidades, as desvalias depois de cada porta de casa, principalmente nos arredores centrais da cidade.
Nasci em Poço Redondo, sertão sergipano. E pelas ruas de minha Nossa Senhora da Conceição de Poço Redondo, ando e sofro, sorrio e choro. Não é fácil amar e sofrer. Conheço histórias e realidades de mesa sem pão, de panela vazia, de uma gente que padece sem coragem de pedir ajuda a ninguém. Somente quando a porta é aberta por outra pessoa é que a verdade se expõe dolorosa. E há muita gente assim, muita família assim, que por trás da porta fechada a tristeza vela o choro da criança, o desespero da mãe, a aflição do pai.
Poço Redondo nunca foi lugar de pessoas batendo portas em busca de esmolas. Somente em ocasiões especiais, como na semana santa, visitas eram feitas somente para lembrar o costumeiro peixe, o coco, a lembrança tão necessária. Mas a cidade cresceu muito, muitas famílias chegaram de outras regiões, e a grande maioria foi se espalhando pelos arredores, nos bairros e conjuntos. Então surgiu um duplo sofrimento: o da falta de pão e o desconhecimento de quem possa ajudar.
Uma pobreza que muitas vezes se esconde pela dignidade de não pedir, pelo envergonhamento ou pela simples falta de quem pedir, vez que quem está mais propenso a ajudar é exatamente aquele que pouco ou quase nada tem. A riqueza sequer nem sempre abre a porta ao saber que quem está do outro lado é um faminto. Por isso mesmo que grande parte da população possui até o receio de pedir ajuda. Ainda bem que pessoas das pastorais e de outros grupos religiosos visitam tais famílias e passam a conhecer as terríveis realidades: a pobreza feia, ossuda, faminta, lacrimejante, está mais viva e assustadora do que tudo.
Não crio ilusões nem falseio verdades. Como disse o poeta, “Meninos, eu vi!”. Digo mais: “Meninos, eu vejo, eu sinto, eu também sofro pela dor do outro!”. Que bom que os demais também vissem, sentissem e se entristecessem também. Basta ir além das ruas centrais, caminhar um pouco mais, e logo se chegará perante a mesa sem pão e a criança chorosa. É preciso ouvir o choro da criança, sentir quanto dói o pequenino implorar comida e os pais desesperados sem saber o que fazer. E bem ali tal sofrimento. Chegando lá pergunte onde mora a pobreza. E a encontrará por todo lugar.
Assim na cidade e suas periferias, e redobrando-se em dor e sofrimento quando se vai mais além, pelos lugarejos escondidos, pelas povoações, pelas casinhas de cipó e barro espalhadas pelas vastidões da terra seca. Ao longe, logo a certeza: a feição da tapera é a mesma de seu dono. Tudo em graveto, em restos, em poeira de vida.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

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