*Rangel Alves da Costa
Em noites assim, somente um cálice de doce
veneno. Em determinadas noites saudosas, chuvosas, nostálgicas, solitárias,
vazias, perdidas, descompassadas, amargas, nada melhor a experimentar do que um
cálice de doce veneno.
Tudo é uma questão de suportar as angústias e
aflições dos noturnos solitários e tristes. Mesmo que sempre procure fugir do
copo cheio de bebida e do cigarro sempre aceso, mesmo que se procure não atiçar
as fornalhas dos sentimentos, ainda assim surgirão as angústias e as aflições
tão próprias nas noites solitárias e tristes.
Então, de repente, o que vai sendo bebido é o
cálice de doce veneno. Um cálice cheio de venenos inseparáveis ao ser humano.
Nem sempre tragado, experimentado, sorvido, mas sempre disposto à mão. Um cálice
de tão fino e puro cristal como de rude e grosseiro vidro. Mas de mesmo veneno.
Ou de mesmos venenos. E tão conhecidos como os copos de afastar a sede.
E tantas vezes não há como evitar que o
veneno vá se derramando no cálice. O que surge na mente vai descendo leve, o
que surge na alma vai acrescendo mais, o que surge no espírito vai tornando o
cálice mais cheio, o que surge no coração vai transbordando tudo. Numa junção
de motivos e predisposições, de repente o cálice se mostra completo aos olhos e
ávido para ser experimentado.
Quem não bebe desse cálice transbordante de
saudades, de relembranças, de assados que nunca passam? Quem não bebe a dose da
tristeza, da solidão, da melancolia, da dor, do sofrimento, da tristeza, da
desesperança, da aflição? Quem já não experimentou, trago após trago, desse
veneno que faz querer sumir, desaparecer, deixar de existir? Quem já não se
envenenou entre cartas, poemas, bilhetes, retratos, relíquias passadas, faces e
feições que vão surgindo do nada e somente para angustiar?
Cálice de doce veneno que desce molhado nas
noites chuvosas e faz naufragar o ser mais forte. Não há força que vença uma
saudade molhada, chuviscada, transbordante, batendo na janela, enxurrando lá
fora, trazendo mil memórias e pensamentos. Não há quem não se veja diante do
cálice quando a vidraça molhada parece mostrar um lábio vermelho desenhado ou
um poema escrito em instante de amor. Enquanto a chuva cai, o cálice vai sendo
revirado lentamente, sem pressa, como no pulsar de cada pingo caindo.
No amor o veneno mais potente que possa
existir. Tão doce e tão necessário, tão néctar e tão alimento, tão seiva e
tanto mel, mas também o terrível veneno de findar destino. No seu descompasso
ou no seu abalo, e logo o cálice recebendo, gota a gota, sua dose certeira. Uma
gota que cai do ciúme, uma gota que cai da raiva, uma gota que cai da briga,
uma gota que cai da discórdia, uma gota que cai da incompreensão, uma gota que
cai do medo, uma gota que cai da saudade. E assim, gota a gota, o cálice a ser
provado perante a força de permanência do amor. Tantas vezes, o cálice caído das
mãos, tantas vezes o cálice esquecido num canto, outras vezes o cálice devorado
em fúria.
Também nas incertezas da vida o veneno vai
descendo no cálice. Surgem as indagações, as reflexões, os pensamentos acerca
daquilo que tanto se quer fugir. Negligencia-se, posterga, omite, mas de
repente não há mais como não enfrentar as realidades. Então as gotas de veneno
vão descendo aos poucos, forçadamente, afligindo por dentro e por fora do
cálice humano. Inebria-se assim desse reencontro, embriaga-se de suas razões, mas
sempre são encontradas as razões para experimentar do veneno ou não.
Tais venenos não possuem a força de sucumbir.
E por isso mesmo não se pode deixar de experimentar sua acidez necessária. Venenos
assim matam as dores e os sofrimentos e fazem renascer as esperanças nos
cálices da vida tendentes à queda ou já estilhaçados ao chão. Um gole, apenas
um gole, pode ser a própria salvação da vida.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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