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terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

O SORRISO DE LAMPIÃO


*Rangel Alves da Costa


Mesmo vivendo envolto em preocupações e correrias, e noite e dia tendo de estar ordenando e em constante vigília, Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião, ou ainda o raio da silibrina das caatingas nordestinas, era um homem sorridente. Mas de um sorriso profético e zombeteiro sem igual. Sorriso de escárnio, de troça com o que mais tarde aconteceria.
Os retratos eternizados pela lente de Benjamin Abrahão dão conta desse sorriso constante. Muitos são os instantâneos em preto e branco onde o rei das caatingas esboça ou escancara uma expressão sorridente. Não apenas para a lente, mas por uma instigante e desconhecida satisfação. Mas sorrindo de que mesmo, Virgulino Lampião?
Talvez sorrindo de todos. Sorrindo da volante pela milésima vez enganada pela sua astúcia e sua engenhosidade matreira. Sorrindo dos contrastes do poder que se põe ao seu encalço enquanto lhe outorga patente de Capitão. Sorrindo das mentiras noticiadas a seu respeito e das verdades distorcidas pelas conveniências. Sorrindo do coronel, do poderoso, do latifundiário, daquele que se mija todo quando lhe chega às mãos um bilhete com exigências.
Sorrindo de quem imaginar ser a vida no bando apenas de angústia e sofrimento. Sorrindo ao recordar a povoação inteira correndo aflita perante sua chegada. Sorrindo do coronel que prefere a proteção do cangaço à traição do poder e suas tropas. Sorrindo do medo que faz às elites, aos políticos e governantes. Sorrindo daqueles que não conhecem a diplomacia cangaceira no trato de seus interesses. E também da velha beata que lhe queria santificar.
Por isso é que Lampião era contumaz sorridente, esbanjando contentamento. Sorria de quem não conhecia a sua influência e prestígio dentro da própria volante, principalmente entre seus comandantes. Sorria daquele que se dizia armado até os dentes à espera da chegada do bando. Sorria do poder, da política, do coronel, do governante, de todo aquele metido a besta. Sorria quando o coiteiro chegava trazendo muito mais que provimentos: dinheiro, ouro, presentes caros. O que não chegasse ele mesmo ia buscar e depois sorria muito mais.
Contudo, como dito, também um sorriso profético, futurista, vaticinador. Neste sentido, naquela expressão sorridente também a escrita de um futuro. E assim por que um sorriso perante a sua realidade e o que iria acontecer muito tempo depois. Era como se Lampião sorrisse e neste sorrir afirmasse que o verdadeiro bandido seria conhecido depois. Era como se estivesse dizendo que ele era apenas um sorridente das caatingas perante os outros que mais tarde viriam sem sorrisos, mostrando a face mais cruel da violência e da bandidagem.
E, nas possíveis palavras do próprio Lampião, talvez o seu desabafo: “Caçam homens como se fossem bandidos, como os mais ferozes e temidos animais. Sequer sabem como o verdadeiro bandido age. Mas saberão, pois conhecerão a violência na sua face mais virulenta e o bandido na sua forma mais bestial. Dizem que sou bandido e me caçam noite e dia por todo lugar, não me dão descanso nem reconhecem que também sou um soldado sertanejo e no encalço das injustiças e dos desmandos. Um dia certamente conhecerão aqueles que são verdadeiramente bandidos, mas, amedrontados, permitirão que prossigam nos seus atos de violência. E terá sido o começo da verdadeira barbárie humana”.
Tudo em perfeita harmonia com a música depois gravada por Luiz Gonzaga, coerentemente intitulada “Lampião falou” (composição de Aparício Nascimento e Venâncio): “Eu não sei por que cheguei, mas sei tudo quanto fiz. Maltratei, fui maltratado, não fui bom, não fui feliz. Não fiz tudo quanto falam, não sou o que o povo diz. Qual o bom entre vocês? De vocês qual o direito? Onde esta o homem bom? Qual o homem de respeito? De cabo a rabo na vida. Não tem um homem perfeito. Aos 28 de julho eu passei pro outro lado. Foi no ano 38, dizem que fui baleado, e falam noutra versão que eu fui envenenado. Sergipe, Fazenda Angico, meus crimes se terminaram. O criminoso era eu e os santinhos me mataram. Um Lampião se apagou, outros lampiões ficaram. O cangaço continua de gravata e jaquetão, sem usar chapéu de couro, sem bacamarte na mão. E matando muito mais, tá cheio de Lampião. E matando muito mais, tá assim de Lampião. E matando muito mais na cidade e no sertão. E matando muito mais, tá sobrando Lampião”.
Tudo isso já profetizado por Lampião. E talvez por isso mesmo aquele sorriso dizendo: “Eu o maior bandido? Vocês ainda não viram nada. Esse Lampião que dizem ser tão perigoso parecerá um anjinho diante do que vem pela frente”. E o que temos agora? E é esta a volante moderna que tem medo de subir o morro para enfrentar outro tipo de rei: do tráfico, do pó, do sangue? Então sorria Lampião. Nada mais sério e sincero que o sorriso que um dia foi seu.


Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com

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