*Rangel Alves da Costa
Mesmo vivendo envolto em preocupações e
correrias, e noite e dia tendo de estar ordenando e em constante vigília,
Virgulino Ferreira da Silva, o Capitão Lampião, ou ainda o raio da silibrina das
caatingas nordestinas, era um homem sorridente. Mas de um sorriso profético e
zombeteiro sem igual. Sorriso de escárnio, de troça com o que mais tarde
aconteceria.
Os retratos eternizados pela lente de
Benjamin Abrahão dão conta desse sorriso constante. Muitos são os instantâneos
em preto e branco onde o rei das caatingas esboça ou escancara uma expressão
sorridente. Não apenas para a lente, mas por uma instigante e desconhecida
satisfação. Mas sorrindo de que mesmo, Virgulino Lampião?
Talvez sorrindo de todos. Sorrindo da volante
pela milésima vez enganada pela sua astúcia e sua engenhosidade matreira.
Sorrindo dos contrastes do poder que se põe ao seu encalço enquanto lhe outorga
patente de Capitão. Sorrindo das mentiras noticiadas a seu respeito e das
verdades distorcidas pelas conveniências. Sorrindo do coronel, do poderoso, do
latifundiário, daquele que se mija todo quando lhe chega às mãos um bilhete com
exigências.
Sorrindo de quem imaginar ser a vida no bando
apenas de angústia e sofrimento. Sorrindo ao recordar a povoação inteira
correndo aflita perante sua chegada. Sorrindo do coronel que prefere a proteção
do cangaço à traição do poder e suas tropas. Sorrindo do medo que faz às elites,
aos políticos e governantes. Sorrindo daqueles que não conhecem a diplomacia
cangaceira no trato de seus interesses. E também da velha beata que lhe queria
santificar.
Por isso é que Lampião era contumaz
sorridente, esbanjando contentamento. Sorria de quem não conhecia a sua
influência e prestígio dentro da própria volante, principalmente entre seus
comandantes. Sorria daquele que se dizia armado até os dentes à espera da
chegada do bando. Sorria do poder, da política, do coronel, do governante, de
todo aquele metido a besta. Sorria quando o coiteiro chegava trazendo muito
mais que provimentos: dinheiro, ouro, presentes caros. O que não chegasse ele
mesmo ia buscar e depois sorria muito mais.
Contudo, como dito, também um sorriso
profético, futurista, vaticinador. Neste sentido, naquela expressão sorridente
também a escrita de um futuro. E assim por que um sorriso perante a sua
realidade e o que iria acontecer muito tempo depois. Era como se Lampião
sorrisse e neste sorrir afirmasse que o verdadeiro bandido seria conhecido
depois. Era como se estivesse dizendo que ele era apenas um sorridente das
caatingas perante os outros que mais tarde viriam sem sorrisos, mostrando a
face mais cruel da violência e da bandidagem.
E, nas possíveis palavras do próprio Lampião,
talvez o seu desabafo: “Caçam homens como se fossem bandidos, como os mais
ferozes e temidos animais. Sequer sabem como o verdadeiro bandido age. Mas
saberão, pois conhecerão a violência na sua face mais virulenta e o bandido na
sua forma mais bestial. Dizem que sou bandido e me caçam noite e dia por todo
lugar, não me dão descanso nem reconhecem que também sou um soldado sertanejo e
no encalço das injustiças e dos desmandos. Um dia certamente conhecerão aqueles
que são verdadeiramente bandidos, mas, amedrontados, permitirão que prossigam
nos seus atos de violência. E terá sido o começo da verdadeira barbárie
humana”.
Tudo em perfeita harmonia com a música depois
gravada por Luiz Gonzaga, coerentemente intitulada “Lampião falou” (composição
de Aparício Nascimento e Venâncio): “Eu não sei por que cheguei, mas sei tudo
quanto fiz. Maltratei, fui maltratado, não fui bom, não fui feliz. Não fiz tudo
quanto falam, não sou o que o povo diz. Qual o bom entre vocês? De vocês qual o
direito? Onde esta o homem bom? Qual o homem de respeito? De cabo a rabo na
vida. Não tem um homem perfeito. Aos 28 de julho eu passei pro outro lado. Foi
no ano 38, dizem que fui baleado, e falam noutra versão que eu fui envenenado. Sergipe,
Fazenda Angico, meus crimes se terminaram. O criminoso era eu e os santinhos me
mataram. Um Lampião se apagou, outros lampiões ficaram. O cangaço continua de
gravata e jaquetão, sem usar chapéu de couro, sem bacamarte na mão. E matando
muito mais, tá cheio de Lampião. E matando muito mais, tá assim de Lampião. E
matando muito mais na cidade e no sertão. E matando muito mais, tá sobrando
Lampião”.
Tudo isso já profetizado por Lampião. E
talvez por isso mesmo aquele sorriso dizendo: “Eu o maior bandido? Vocês ainda
não viram nada. Esse Lampião que dizem ser tão perigoso parecerá um anjinho
diante do que vem pela frente”. E o que temos agora? E é esta a volante moderna
que tem medo de subir o morro para enfrentar outro tipo de rei: do tráfico, do
pó, do sangue? Então sorria Lampião. Nada mais sério e sincero que o sorriso
que um dia foi seu.
Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com
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