SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

CASEBRES DE TRISTES DISTÂNCIAS


*Rangel Alves da Costa


Na roda ou no passo, de lenta passagem ou na correria, de repente meu olhar se alonga para avistar uma terna e entristecida poesia. Uma singela moldura: casebre pobre de beira de estrada, fincado na triste distância do mundo.
Todos os casebres que avisto sempre parecem com a mesma feição. Quase todos erguidos no barro, na vara e cipó, com janela e porta, e uma solidão de remoer sentimento. De telhado baixo, quase rente à portada, tudo tão envelhecido como a própria vida.
O barro caindo ali e acolá, a madeira da janela e porta já carcomida de idade, de vez em quando palhas secas recobrindo as frestas muitas que se abrem nas cumeeiras. Uma gaiola sem pássaro descendo da parede, um couro antigo de boi, um instrumento de trabalho dependurado.
Ao fundo, mesmo que o meu olhar nem sempre consiga avistar, certamente um quintal sem cerca limitando o tamanho, pois tudo se juntando e se embrenhando na pouca mata que se alonga adiante. Quintal de planta seca, de antigo pilão, de purrão, de pedra de lavar roupa, de tronco de pau jogado num canto.
Um quintal tão pobre quanto a pobreza do casebre e seus habitantes. Raramente uma galinha cisca de canto a outro, um cachorro magro ladrando a solidão, um calango passando em correria desenfreada, pois tudo assim: tão pouco, quase nada. Nada de mamoeiro ou jaqueira, de goiabeira ou mangueira.
Há um silêncio instigante em tudo. Imagina-se estar num mundo de mortos, de adeuses dados e despedidas lacrimejadas. O vento sopra mais forte, vai trazendo folhas mortas, bate e rebate no pequeno varal, mas nenhuma roupa para esvoaçar, nada para levar, a não ser as notícias desalentadas de uma solidão de presenças.
Sim, uma solidão de presenças, ainda que pouco se aviste vaca, cavalo ou jegue, ainda que bicho de cria viva escondido acaso existente. E ainda que pouco se aviste os habitantes daquelas distâncias tristes e solitárias. Certamente as vidas se escondem por trás das portas ou estão mais além em busca de uma caça qualquer para a comida do dia.
Já depois do entardecer, quando a boca da noite se anuncia, ainda é possível divisar uma luz anunciando o viver de lá dentro. Luz de candeeiro, de placa, de luminária a gás. Também é possível sentir o cheiro de um café forte borbulhando no fogão de lenha, de uma banha de porco esperando o ovo ou a tripa, de um cuscuz suando seu delicioso sabor.
Mas quando um cheiro assim não é sentido? O que fazem os habitantes desse mundo para sobreviver, para enganar a barriga, para não adormecer no ronco da fome? Talvez um resto de farinha, um pedaço adormecido de pão, um pedaço de qualquer coisa que restou de outros restos. Triste imaginar que a mesma situação com a presença de crianças, de folhos pequenos e até de colo.
As pessoas que vivem nesse mundo também parecem todas iguais. Olhares profundamente tristes, rostos magros curtidos de sol, mãos ossudas e pés calejados de ponta de pedra e espinhos de chão. Mas o sorriso sempre aberto em gestos afetuosos para receber todo aquele que bater à porta. E logo oferecem o tamborete, uma xícara de café, um ovo, o que possam dispor para bem receber e agradar o visitante.
Seus nomes também parecem todos iguais. João bem que poderia ser Bastião, Pedro bem que poderia Manoel, Maria bem que poderia Severina, Zefinha bem que poderia Maralina. Enquanto isso o menino corre atrás do calango, brinca de ponta de vaca, como o barro da parede. Buchudinho o danado.
Avistei uma boneca de plástico, sem uma perna e já sem cabelos, estendida no meio do tempo, perto de um umbuzeiro baixo e de folhas mortas pela seca, e logo a chegada em correria de uma menininha tão bela como maltrapilha. Levantou a boneca do chão, beijou nos seus restos, e a colocou em seus braços.
Já me afastando, na caminhada que ia, eu olhei para trás e vi a menina ainda em pé com a sua boneca. Acenou-me. Repetidamente. E molhei a terra seca com uma lágrima que surgia em palavras: adeus!


Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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