*Rangel Alves da Costa
Não tenho tempo. Só tenho pressa. Por isso
tenho que correr, correr, correr. Ao longe, já ouço o apito do trem. Ouço
alguém me chamar. Um grito desesperado. Um brado voraz. Tudo chama. Não tenho relógio
de pulso, mas há um relógio na estação dizendo que está na hora. A fumaça já é
avistada entre as serras. Não ouvi, ainda não ouvi, mas há quem afirme já ter
escutado o apito do trem.
Não recordo bem se fechei a porta do fundo,
se forrei a cama do quarto de dormir, se tornei em cinzas as brasas flamejantes
ainda há pouco. Não sei se recolhi a fruta caída que avistei de manhã. Não
recordo bem se reguei as flores do pequeno jardim ao lado ou se joguei pingo
d’água no caqueiro de rosa triste. As folhas de erva cidreira talvez Nada sei. Só sei que tenho pressa. E por isso
tenho de correr, correr, correr, e assim vou correndo, correndo, correndo.
Havia prometido a mim mesmo escrever uma
longa carta para deixar em cima da mesinha da sala da frente. Não sei bem quem
poderia entrar pela porta e se deparar com o escrito, mas eu sentia necessidade
de deixar algo escrito sobre o que fui e passei ali. Gostaria muito de dizer o
quanto fui feliz por muito tempo, mas também o quanto fui infeliz por muito
mais tempo. Iria pedir que jogasse um pouco de água nas plantas que ainda
restassem e que nunca apagasse os poemas deixados nas paredes.
Dentre tais poemas, há um que gosto demais.
Jamais irei esquecê-lo: “E quando a noite caiu e eu também caí, quando eu quis
segurar a lua, a lua estava escondida entre os cabelos morenos de um céu que um
dia foi meu...”. Também outro que gosto muito: “No teu mar macio, de leveza e
vida, de perfume e calor, o meu barco segue em busca de nada encontrar, apenas
seguir e seguir, e amar e amar...”. Mas tanto faz. Apague-os, se assim desejar.
Não fui poeta de nada, nunca fui poeta de nada. Talvez a minha poesia estivesse
somente no meu olhar.
Avistar da janela adiante era como ter poesia
no olhar. Sentar no meio do tempo ao entardecer, avistando aquele mundo
amarelado e tão belo, aquela fogueira se apagando no alto, chegava-me como
verdadeiro poema. Mas nunca poema alegre, de contentamento. Em tudo uma
nostalgia, uma saudade doída, uma relembrança amarga e dolorosa. Em tudo um
sofrimento infinito. Não sei bem se foi por isso que resolvi partir.
Na verdade, sempre gostei de minha solidão,
de minhas quatro paredes, de minha rede, das caminhadas que fazia ao redor.
Sempre gostei muito de conversar com a pedra, de conversar com os bichos, de conversar
com a brisa e o vento. De xícara fumegante à mão, então eu saía até perto da
pedra grande para avistar o mundo adiante. Então eu avistava as distâncias, os
horizontes, imaginando outras vidas e outros caminhos além. Em instantes assim,
contudo, não me chegava desejo algum de partir algum dia. Desejava mesmo a
eternidade naquele lugar, uma eternidade que se entranhasse ao chão depois do
último pó do adeus. Mas de repente resolvi partir.
Não tenho quase nada para levar. Lembro-me
somente do trem que logo partirei e do meu instante de partida que havia
chegado. Daí ouvir o grito a me chamar, daí imaginar que tudo estava dizendo
para me apressar. Tudo dizendo para correr, correr, correr. E por isso, para
não perder o trem, é que estou correndo, correndo, correndo. Que eu não espere
qualquer adeus, qualquer lenço acenando, qualquer lágrima. Não há absolutamente
ninguém que faça assim por mim. Aliás, não há absolutamente ninguém que sinta
qualquer coisa por mim, nem ódio nem amor, nem amizade nem desapreço, nem
carinho nem inimizade.
Não nego que sentiria prazer em ter algum na
janela de lágrimas nos olhos e lenço balançando à mão. Mas impossível que assim
aconteça. Não haverá tempo para me despedir do varal estendido no quintal.
Sempre sentia um prazer diferente – um tanto mórbido – em ficar por horas a fio
perante o varal. Aqueles panos querendo voar, querendo se desprender, querendo
rumar por aí sem destino. Talvez aquelas imagens penetrassem tanto em mim que
de repente me fiz impulsionado a fazer o mesmo.
Vou partir sem qualquer despedida do varal. Não
sei sequer se deixei alguma roupa estendida por lá. Ou sei. Não sei. Talvez eu
tenha ficado estendido lá. E o que parte agora é apenas a roupa. Que corre e
corre, por que tem pressa. Muita pressa de chegar a qualquer lugar.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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