*Rangel Alves da Costa
Noutros tempos, se dizia que determinados
jornais escorriam sangue acaso suas páginas fossem amassadas, assim pelos
conteúdos de violência estampados nas manchetes e detalhados nos setores
policiais. Também noutros idos, muito se dizia que a verdade dos fatos
jornalísticos somente era conhecida se na mesma manhã fossem lidos dois
jornais: o da situação e o da oposição. Mas mesmo com a violência escorregando
entre as mãos ou o enraivecimento perante os acontecidos da política,
mantinha-se fervorosamente a paixão pelo jornal impresso, aquele mesmo comprado
nas bancas a cada alvorecer ou recebido além do portão residencial.
Hoje a paixão continua a mesma, o profundo
amor continua o mesmo. Ao lado do rádio - do velho radinho de pilha colocado
rente ao ouvido -, o jornal impresso permanece se constituindo em verdadeiro
amigo inseparável, ainda que os olhos já não mais se espantem com as manchetes
estampadas dias após dia: “A maioria dos congressistas responde a processos no
STF”, “A Operação Lava Jato chegou às altas cúpulas partidárias”, “Corrupção,
improbidade, lavagem de dinheiro, falsidade ideológica: o cotidiano lamacento
do poder”, “O Brasil já é considerado o país mais corrupto do mundo”. Manchetes
rotineiras que em outros tempos causariam alvoroço, mas hoje apenas parecendo
mais um capítulo de novela. Os capítulos seguintes estarão estampados nas
vergonhosas manchetes.
O apego ao jornal é mais antigo do que se
imagina. Não só na novidade surgida pelos idos de 1808, quando os primeiros
jornais começaram a serem impressos no Brasil, mas pelas letras graúdas
informando sobre um mundo novo até então desconhecido por muitos. E mesmo mais
recentemente, manchetes como estas estampadas perante olhos atônitos: “Amplia
aliança entre as potências do Eixo e o Japão” (Jornal do Brasil, 1940), “Jango
asilado no Paraguai” (O Dia, 1964), “Goulart decreta a desapropriação de
terras, encampa refinarias e pede nova Constituição” (Jornal do Brasil, 1964),
“Matou-se Vargas!” (Última Hora, 1954), “Suicidou-se o Sr. Getúlio Vargas” (O
Globo, 1954), “Decretado o recesso do Congresso Nacional - Governo baixa novo
Ato” (Folha de São Paulo, 1964), “Não vai ter capa!” (Meia Hora, 2014).
O interesse pelo jornal era tamanho que
muitos não davam por começado o dia sem que algum diário informativo fosse
folheado ali mesmo à mesa, ao lado da xícara de café. O café chegado fumegante,
logo ia esfriando ante a avidez pela leitura. Há de se considerar, contudo, que
o jornal antigo não era apenas uma junção de folhas noticiosas, voltadas apenas
para os editoriais, a política, o esporte e os fatos policiais. Consistiam em
pequenas enciclopédias onde havia de tudo um pouco. Assim é que em suas páginas
eram encontradas capítulos de folhetins, receitas de bolos, longos obituários,
cartas amorosas, fofocas sobre os ricos e famosos, anúncios sobre tudo. Muito
escravo já foi anunciado em jornal!
Algo realmente para os dias atuais, mas
antigamente escravos bons, de porte atlético, de dentes sadios e brancos, eram
oferecidos nas páginas dos jornais como um produto qualquer. No século XIX era constante
que os jornais surgissem anunciando o aluguel, a venda ou a recompensa perante
fuga de escravos. “Fugiram da Fazenda Pirassununga no dia 20 do corrente os
ecravos seguintes: Gregorio 25 annos, preto fulla, sem barba, falta de dentes
na frente, e pernas finas...”, “Precisa alugar uma criada que saiba cosinhar e
fazer os arranjos de uma casa de família, e um moleque para recados, na rua da
Princeza n. 1.”. Anúncios assim eram comuns em séculos passados, e certamente
com muitas pessoas interessadas no indigno comércio.
Aquelas mocinhas lacrimosas que ansiavam pela
semana seguinte para a aquisição do jornal e acompanhamento da incrível
história dos amores separados pelo destino. E assim por que os grandes romances
dos inícios da literatura brasileira, principalmente no romantismo, surgiram
primeiro em forma de folhetins: Machado de Assis, Joaquim Manuel de Macedo, José de Alencar e
Aluísio Azevedo, dentre tantos outros. Desse modo, romances famosos nasceram
primeiro nas páginas dos jornais, a exemplo de A Moreninha, O Guarani, O
Ateneu, Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Por isso mesmo que o velho e sempre novo
jornal impresso é sempre amado, esperado e lido. As velhas máquinas
tipográficas foram dando lugar a modernos equipamentos de impressão, a velha
catação de tipos para formar nomes e nos nomes a junção das frases da matéria
inteira, agora cedeu lugar às impressões digitalizadas. Mas o amor é o mesmo,
tanto para quem faz o jornal como para o leitor. Para muitos, não há prazer
maior que ouvir a voz do jornaleiro em bicicleta ou o barulho do papel caindo
depois de arremessado portão adentro. E logo se imagina uma notícia boa. Mas
não. Nos tempos modernos não.
Folheando o jornal, colocando as notícias
diante do olhar, é como se a proximidade dos fatos fosse muito maior. E também
a noção da maior veracidade do escrito no papel do que em qualquer outro lugar.
É o prazer de tocar, de folhear, de ir lendo as manchetes e as chamadas, de ir
dialogando com a informação. Muita gente continua cultivando esse amor imenso
pela palavra escrita em papel, como se tudo ali fosse de sua posse e de sua
fruição. E sempre o cuidado para que as letras não caiam ao chão. Acaso caiam,
talvez não seja mais possível recuperar a República nem salvar o Brasil dessa
putrefata corrupção.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário