*Rangel Alves da
Costa
Calçadas
de sombreados, tardes fagueiras, brisas com perfume de mato e mãos ágeis
correndo pelas almofadas. No papelão cuidadosamente desenhado pelas mãos
sertanejas, surge o molde que é deitado e pregado por riba do enchimento. Nele
as curvas perfeitas, os caminhos, o trançado que vai ter o bordado. E quanta
beleza, quanta originalidade surgida de mãos matutas, tantas vezes já
envelhecidas, que nem sempre sabem escrever o próprio nome, mas que se esmeram
na singela feitura da arte de um povo.
Pelas
calçadas, nos silêncios da boa fresca ou mesmo entre um converseiro e outro, as
mãos seguram, levantam, passeiam, transmudam e revolvem, até colocar os bilros
na marcação do espinho. E espinho grande, pontudo, de mandacaru sertanejo, ali
sobre a almofada para demarcar o desenho e a curva a ser percorrida no molde
perfurado no papelão. Por entre os espinhos os bilros vão sendo pendurados até
novamente serem procurados. Não há ofício mais belo que este, que a arte da
“muié rendera” do nosso sertão.
“Muié
rendera”, mulheres rendeiras de um Poço Redondo que não mais tece sua arte como
antigamente. Mas onde elas estão agora? Que fim levaram aquelas mulheres e suas
almofadas grandes, imensas, gordas, colocadas em cima de tamboretes e na
proximidade das mãos? Onde estão aqueles bilros, aqueles moldes, onde estão
aquelas almofadas de panos floridos, cheias de velhices e sempre novas? Onde
estão aquelas mãos calejadas de tempo e tão hábeis nos seus ofícios? Onde estão
aquelas tardes de calçadas sombreadas, aquelas tardes debaixo de pés de paus ou
mesmo nas varandas e cantos de casa?
Mas
saudades não somente das almofadas, dos bilros, dos moldes, daquelas mãos ágeis
em pressa de fazer coisas belas, mas também daquelas senhoras e mocinhas que
tantas costuras bonitas faziam. Costureiras de mão cheia, como se dizia, mas
não costura de máquina, e sim na mão, na agulha, no dedal e no bastidor. Pra
quem sequer se lembra mais, bastidor é a denominação sertaneja para aquele aro
de madeira onde o pano era estendido e preso para ser costurado ou bordado.
De cima do
bastidor, a partir de riscos previamente feitos ou pela criatividade da bordadeira,
logo surgindo os pontos cruz para dar forma a toalhas, colchas e outras peças
em tecidos. Das mãos dessas bordadeiras iam surgindo verdadeiras obras de arte.
De Poço Redondo saíam verdadeiros carregamentos de bordados para o sul do país.
Senhores como Zé Hipólito e Gabriel Feitosa mantinham verdadeiro intercâmbio
comercial entre as bordadeiras sertanejas e as madamas sulistas.
Era um
comércio injusto, contudo, sempre desfavorável às artistas interioranas, vez
que suas belas e demoradas costuras e seus magníficos bordados saíam de suas
mãos por preço muito abaixo do real valor. Ora, uma colcha de mesa bem feita,
rendada, bem trabalhada no esmero e na formosura, podia levar até meses para
ficar pronta. E trabalhos artesanais tão bem elaborados que vão ficando ainda
mais valiosos com o passar dos anos. Ainda hoje, mesmo em Poço Redondo, as
colchas de cama e toalhas antigas só saem dos armários em dias especiais ou no
período da Festa de Agosto.
Mas os
tempos são outros e nossas rendeiras, costureiras e bordadeiras, ou já foram
tecer para o altar do Senhor ou já guardaram suas almofadas, seus bilros, seus
moldes, seus bastidores, seus dedais, suas linhas, suas tesouras. Restam
poucas, muito poucas, infelizmente. Dona Clotilde, uma das maiores rendeiras de
todos os tempos, não possui mais sequer almofada. Outro dia, numa das visitas
que sempre faço à sua residência, senti seus olhos molhados enquanto conversávamos
sobre essas coisas belas. Dona Conceição de Laura, na sua beleza de todo dia,
ainda mantem viva nossa tradição. Cenira também abdicou da almofada, assim como
fizeram tantas outras. Dona Domingas vive sonhando com alguma jovem que bata à
sua porta desejosa de aprender os segredos da almofada e dos bilros. Ainda bem
que suas filhas abraçaram a arte da mãe.
Minha avô
Emeliana costumava sentar-se diante de almofada. Mas nunca igual a Dona Araci,
a Maria de Iaiá, a Dona Davina, a Carmosina e tantas outras. E se agora eu
tivesse um lenço, queria um bem antigo, bordado à mão por uma calejada mão
sertaneja: “Para usar na saudade!”.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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