*Rangel Alves da Costa
Muita gente se nega a assumir sua linhagem ou
hereditariedade acaso o parentesco envolva um passado de valentia extremada ou
de covardia exacerbada. Assim também quando o parente passou pela vida em meio
ao que muitos denominam demérito. Segundo dizem, honroso é quando o parente
deixou seu nome grafado no livro de ouro da memória ou está com seu nome em
estátua, em bonito logradouro ou prédio público.
Na escolha do mito, certamente que ninguém
vai optar por um parentesco que não honre e dê fama à sua imagem no presente.
Daí dizer-se que o “zé-ninguém” tem família, mas não tem parentesco.
Dificilmente será recordado como linhagem. Até mesmo entre os vivos alguns
parentes são evitados, que se imagine depois de já partido para o além. Mas não
há como afastar a linhagem ou o parentesco, qualquer que seja.
Eu, por exemplo, tenho no sangue sertanejo
uma linhagem que vai desde o comum, passando pelo cangaceirismo, pelo comércio
e pela política. Na minha raiz está o sertanejo de sol, de trabalho duro na
terra, mas também a de possuidor de terras, de fazendeiro, de dono de armazém e
bodega, de jogador de baralho e sinuca. Ainda na minha raiz está o homem
hospitaleiro, o amigo da igreja e do cangaço, o nome hoje escrito na história e
ainda vivo na memória de muitos. E na raiz mais recente, também o sangue
político, da escrito, do verso, da sabedoria sertaneja. Assim desde meus avôs
aos meus pais.
Saliento que sou parente de cangaceiro. Tenho
no sangue familiar também a cor do sertão valente, destemido, corajoso,
intrépido. Ou mesmo do mero banditismo, na concepção de alguns. Mas fazer o
que? Se um dia um parente meu enveredou pelo mundo do cangaço e foi ser cabra
de Lampião, quem sou eu para negar agora tal realidade. O que está escrito na
história ninguém apaga. Se por honra ou desonra, a verdade é que o fato não
pode ser negado. E o tenho com grande orgulho. Apaixonado pela história do
cangaço como sou, ter um parente que um dia serviu ao bando de Lampião se torna
até dignificante.
Assim, sou parente de cangaceiro, e daí? Sou
sobrinho-neto do cangaceiro Zabelê, um dos três Zabelê que fizeram parte do
bando de Lampião, e que estava na Gruta do Angico naquele terrível alvorecer de
28 de julho de 38, quando onze cangaceiros foram chacinados pela volante
comandada pelo tenente João Bezerra. Morreram Lampião, sua Maria Bonita e mais
nove cangaceiros. O meu parente conseguiu fugir das cuspideiras de fogo,
embrenhar-se nos carrascais catingueiros e sumir no oco do mundo. Depois disso
desapareceu de vez, nunca mais retornou a Poço redondo, seu berço familiar.
Minha avó
paterna Emeliana era irmã - por parte de pai e de mãe, como se diz no sertão -
de Manoel Marques da Silva, mais tarde apelidado como Zabelê no bando de
Lampião. Manoel Marques, o Zabelê, era filho de Antônio Marques da Silva e
Maria Madalena de Santana, a Mãe Véia. Tio materno de meu pai Alcino Alves Costa
era, pois, meu tio-avô. E meu pai, depois um reconhecido e valorizado escritor da
saga cangaceira, nunca negou a ninguém seu orgulho desse tio desgarrado da
terra e viajante pelos perigos dos sertões.
Rapazote
ainda, quase na idade de menino, influenciado pelas andanças do bando do
Capitão pela região de Poço Redondo, no sertão sergipano, eis que um dia Manoel
Marques decidiu seguir no rastro dos homens do sol, da lua e da catingueira.
Abandonou a família para nunca mais retornar ao lar, ainda que muito andasse em
séquito pela região e redondezas. Como dito, estava presente na Gruta do Angico
quando Lampião, Maria Bonita e mais nove cangaceiros foram chacinados pela
volante alagoana, porém saiu ileso. Mas desse dia em diante ninguém mais teve
notícia de seu paradeiro.
Com o nome
de pássaro, pois Zabelê é nome de bicho que voa, talvez tivesse voado para uma
desconhecida distância. Durante muitos anos seus familiares entrecortaram
regiões do país no seu encalço, em busca de seu paradeiro, mas sem jamais
reencontrá-lo. Voou, Zabelê voou. Arribou para sempre e nunca mais retornou.
Hoje é pássaro somente na história e na recordação. Deixou apenas um irmão e
muitas irmãs, dentre as quais minhas tias Mariquinha, Osana, Cordélia,
Mãezinha, Conceição e Rosinha, todas já falecidas. Seus parentes de hoje formam
um Poço Redondo inteiro.
Zabelê é, assim,
parte de uma linhagem que orgulha seus parentes de agora. Não há um só familiar
que renegue ou se diga diminuído pelo parentesco com o cangaceiro. Pelo
contrário, sempre ecoa forte e orgulhosa a afirmação de ser parente de Zabelê,
de ter no sangue seu lastro destemido e aventureiro. Também do cangaceiro
poeta, apaixonado, cantante das coisas da terra e dos amores da vida. Pássaro
sertanejo este Zabelê. Lamentoso e triste, porém ainda persiste o seu cantar.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
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