ALFORJE DE CAÇADOR
Rangel Alves da Costa*
Para os que ainda não sabem ou conhecem, alforje é um saco de couro, fechado nas extremidades e aberto no meio, formando como que dois bornais, que se enchem equilibradamente, sendo a carga transportada no lombo dos animais ou sobre os ombros de uma pessoa. Por sua vez, bornal ou embornal é uma bolsa de couro onde o sertanejo carrega, por exemplo, seu canivete, sua pinga, seu fumo, sua farinha com carne e rapadura.
Lampião e seus cabras, quando cruzavam os sertões nas suas empreitadas sem fim, ao lado de outros apetrechos de paz e de guerra carregavam seus embornais cheios de anéis de ouro, balas prateadas e pequenas recordações de uma vida de sangue. Sem o alforje, sem o embornal, ninguém era ninguém, a vida era nada. O baú da memória cangaceira estava ali pendendo pelo corpo, descendo pelos ombros, no couro cru, envernizando de suor, cheirando a sertão.
Como dito, o alforje de couro cru, de tão envelhecido chega a cheirar a sertão. E qual o cheiro de sertão, alguém poderia perguntar. O sertão cheira a suor, a bafo quente de terra molhada, a coivara e queimada, a sol esturricando gente e bicho, a mormaço e insolação, a carniça de gado morto na pastagem nua, a café torrado e pisado no pilão, a cuscuz de milho ralado em casa, a beiju, a tapioca, a buchada, a flor no jardim da esperança, a perfume de alfazema nas mocinhas bonitas que alegram o entardecer. Sertão cheira a tudo isso, e mais a cheiro de água. Água cheira a nada, e esse também é o cheiro do sertão.
Para se caminhar por esse sertão que cheira a tudo e a nada, o homem precisa ser destemido e valente. Ora, meu Deus, se tudo que se abeira, se adentra, se coloca e existe no sertão é grandioso, perigoso e verdadeiro demais aos olhos, não haveria de ser um fraco que quisesse andar pelos seus caminhos de pedras, suas veredas de tocaias, seus labirintos de assombrações, seus habitantes medonhos e ameaçadores. Tem cobra seu moço, tem urtiga e cansanção, tem espinho de quipá por todo lugar, tem bicho homem por trás da moita.
Nem todo sertanejo, criado comendo barro da tapera, caminhando pelo massapê, subindo nas catingueiras e tomando banho dia e noite de sol, sabe e conhece os caminhos do sertão. Hoje até que está muito fácil, vez que mata fechada se acabou, as onças sumiram e os perigos são outros. Mas quando a mataria era espessa, sem caminho certo pra se andar, com trilhas de cortar solado e as venenosas escondidas em cada moita e embaixo de cada pedra, tinha que ter o que fazer pra se entrar nesse mundo.
Mas varar pelas veredas sertanejas sempre foi preciso. A vida se faz caminhando, seu moço. Quem quiser matar a fome dos meninos tem que ir atrás do mocó e do preá, da nambu e da rolinha, do punhado de milho e de feijão, da abóbora leiteira e da melancia bonita que ficaram escondidas embaixo das ramagens pra ninguém roubar. Mas ninguém vai sem nada pelo corpo não, que ninguém é besta. Não há que se dar um passo sem o alforje de caçador sendo carregado, como se fosse braço, como se fosse pé.
Um dia encontraram um alforje esquecido pendurado num pé de catingueira, longe, bem longe. Depois de tantas noites de sereno e dias de sol, o couro parecia encardido, com uma cor diferente, querendo enrugar. Como um caçador poderia esquecer seu alforje, meu Deus, se perguntou um menino que havia ido caçar passarinho por aquelas distâncias. Certificando-se que há mais de mês o alforje tinha sido esquecido ali, o pequeno sertanejo desceu o alforje e abriu com cuidado.
Revirou todinho, balançou, sacudiu de cabeça pra baixo e só caiu um bilhete: Quem encontrar esse alforje entregue a Maria de Ernestino. Ela tá grávida e como vou ter ver vergonha de não poder tirar mais nada desse sertão pra dar ao meu filho, que ao menos ela fique com essa lembrança, que vou sair entristecido pelo meio do mundo.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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