A CASA E A VIDA DO MONSTRO - 1
Rangel Alves da Costa*
Morava numa cidade do interior. Num desses lugares de eterna aparência sertaneja, onde os mais velhos cultivam suas tradições e seus modos comportamentais e ao entardecer se avista inúmeras cadeiras pelas calçadas, embaixo dos sombreados das árvores ou em qualquer lugar propício para um bom proseado entre vizinhos e conhecidos.
Por outro lado, as mudanças ocorridas nas cidades grandes começaram a fazer efeitos também por lá. A juventude aparecia com modismos, com coisas e hábitos estranhos que muitas vezes eram o mesmo que pontadas nos corações dos moradores mais antigos, mais conservadores e respeitosos. Para muitos era pura pouca vergonha, para outros era fim de mundo mesmo.
Quem já se viu tanta papagaiada e tanta safadeza como se vê agora nesse povo, meu Deus! Reclamava a velha Totonha para quem quisesse ouvir. Já Prazeres dobrou as forças de devoção e de beatice e tudo porque, segundo ela, tinha que estar dia e noite pedindo aos santos que protegessem daquele mundo revirado sua Mariazinha. Coitada, tão mocinha e tão linda, será que teria futuro naquela Sodoma? Benza Deus, protegei Senhor!
Mesmo um pouco afastado, era nesse contexto que ele morava. Vivia com sua mãe numa casa humilde levantada na capoeira de um pequeno terreno herdado das entranhas familiares. Família mesmo não havia mais não, se é que se pode dizer assim, pois aquele mundo consangüíneo se resumia apenas a ele e sua velha mãe. A família era os dois, tudo que restava de uma linhagem antiga e tradicional eram os dois.
A mãe dele se chamava Osmunda, ou Mundinha como todos a conheciam e chamavam. Já estava nos arredores dos sessenta e cinco anos, mas com aparência de muito mais que isso. Os muitos anos de trabalho pesado, fazendo serviço até de homem na roçagem, capinagem, chiqueiramento de gado dos outros, montando em cavalo pelos matos, fazendo coivara e levando fumaça na cara, deixaram a pobre mulher numa situação difícil. Doíam-lhe as juntas, o solado dos pés, as mãos encarquilhadas, os pensamentos, quase tudo. Doía-lhe a velhice extrema sem ter chegado a tanto.
Essa indisposição física de Dona Mundinha, sempre cheia de dores e constantes gemidos, acrescida de hábitos muitos peculiares, lhe fez nascer algumas das mais estranhas características que já se viu numa mulher, até mesmo porque era praticamente da roça e religiosa demais por nascimento. Era coisa de deixar qualquer um sem acreditar quando ouvisse estranho dizer. Só pode ser doida, maluquinha da silva, certamente diriam.
Verdade é que Dona Mundinha praticamente não fazia nada em casa. Não lavava uma roupa, não fazia uma comida, não saía para fazer ou comprar nada, bebia da água que o seu filho lhe levava e comia da comida que ele fazia e ia entregar em suas mãos. Não colocava na boca porque dizia que ela não estava aleijada. Ademais, vivia reclamando que ela tomasse prumo, que levantasse e fizesse as coisas, arrumasse a casa e passasse a ter uma vida normal, pois nem estava paralítica nem entrevada, podendo muito bem fazer o que quisesse.
Até seria bom para a saúde se ela andasse pelos arredores, fizesse algum esforço físico, varresse ao menos a casa. Mas nada, não tinha jeito, pois Dona Mundinha um dia cismou de colocar uma cadeira de balanço perto de uma janela e bem ao lado de um oratório antigo e não sai de lá de jeito nenhum. Às seis horas da manhã já se dirige para o seu cantinho e pronto, só sai de lá quando precisa ir ao banheiro ou quando vai dormir. Pensou em colocar a cama bem ao lado, mas o filho não deixou de jeito nenhum.
Assim, desde que acorda Dona Mundinha começa a fazer orações, falar com os santos, pedir milhões de proteção ao bom Deus, acender velas e mais velas, pegar um rosário e outro, tendo sempre algum na sua mão, dando uma sequencia infinita a pai-nossos, salve-rainhas, ave-marias, benditos, louvados e muito, muito mais...
Aprendeu a ler na infância, conhecia a Bíblia evangelho por evangelho, capítulos, versículos e até as notas de rodapé. Eram três ao lado do oratório, com uma sempre ao colo, de onde se espalhavam pelo amanhecer e entardecer as vozes dos salmos, dos provérbios, da sabedoria. Os apóstolos, coitados, já estavam cansados de tanto andar pela boca da velha religiosa.
Só mesmo o filho para suportar tanta evangelização. Mas ele já estava acostumado, não se importava não, gostava. Era melhor que sua mãe vivesse apegada às coisas dos santos e do céu do que estar pensando maluquices. Sua dúvida mais dolorosa era se a velha continuava girando bem, com o juízo bom, pois qualquer um juraria que ela já havia passado de ir para o hospício.
Mas ele estava conformado com aquilo tudo, aceitava a vida que levava de bom grado, pois entregue sempre às preocupações em fazer o bem, em ajudar as pessoas, a agir com honestidade e retidão, a ser visto como uma pessoa que nunca havia feito mal a ninguém. Sua mágoa era somente uma, mas essa era demasiada forte e peso quase insuportável em sua vida. E esta mágoa era ser visto, olhado, conhecido e tido por monstro, nas piores concepções do termo.
Monstro. Era assim que viam, chamavam, o indicavam. Não diziam isso a ele não, mas a fama do monstro espalhava-se por todos os lugares e recantos.
O nome dele é Mehiel. Mehiel dos Santos. Nome estranho, mas nome de anjo, escolhido pela mãe. E daqui em diante todos irão conhecer a vida desse moço chamado monstro. Como se as palavras não ferissem e matassem igual a navalha afiada...
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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