EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 93
Rangel Alves da Costa*
Chegou um dia que Lucas teve que forçadamente constatar que as pessoas não estavam indo mais ali, a obra do novo barracão estava parada, os seus amigos haviam desaparecido, o barracão estava tomado por poeira e folhas, desarrumado e quase abandonado; o mato crescia ao redor e adentrava pela praça da cruz, que estava com aspecto feio e triste.
Ele mesmo não se sentia bem, se achando até estranho. Não estava mais sendo aquela pessoa exigente consigo mesma, alinhada no espírito e no corpo, repreendendo-se a cada erro que cometia. Sentia perdendo o fervor e o ímpeto de antes, o encorajamento exalando por todos os poros e atiçando a vontade de realizar mais e mais. Abatia-se sobre ele um sentimento de que tanto faz as coisas serem de uma forma e não de outra. E isso não era nada bom.
Sem forças para agir, sem se importar e não fazer nada para modificar aquele estado de desânimo e de abandono, aos poucos ficava isolado cada vez mais, como que ilhado na solidão daquela obra maravilhosa que havia construído. Sem querer, Lucas caminhava por um deserto.
E muitas vezes, desde o entardecer até o anoitecer podia ser avistado sentado num dos bancos da praça da cruz olhando para o símbolo do sofrimento do Senhor como se estivesse buscando encontrar respostas para o seu próprio sofrimento. E até sem perceber ou desejar, chorava de as lágrimas caírem sobre o seu rosto e chegar até o seu peito nu. Era triste de se ver Lucas assim, naquele indefinível estado de estranheza e solidão.
E o anjo do Senhor, que sempre esteve ao seu lado em todos aqueles momentos, às vezes se distanciava um pouco e ficava olhando aquela imagem triste e dizia consigo mesmo:
"É triste vê-lo assim, sem que nem mesmo possa entender o que está se passando, o que ainda passará e as consequencias que terá dessa provação. Mas são os desígnios de Deus e nada poderá afastá-los até que chegue o momento da dor, da tristeza, da solidão e do abandono serem afastados para dar lugar ao que tem de ser. Assim será. Obra de Deus e não querer do homem, todo aquele sofrimento agora imposto terá de ser assim para trazer boas consequencias. Depois da dor virá o sorriso, depois do abandono virá a companhia, depois da noite virá o dia. Assim será. Ele não compreende, ninguém ao redor compreende, apenas a natureza sabe dos ventos novos que mais tarde soprarão e trarão uma realidade nova, mesmo que Lucas não esteja presente para se contentar eternamente com os frutos que brotaram de outros frutos de dor e de sacrifício. Assim será porque o Pai quer, é desejo do Senhor e assim se cumprirá..."
E um anjo obediente, de hierarquia inferior, que estava pairando ao lado do anjo do Senhor, perguntou-lhe: "E onde está justificado o sofrimento de Lucas?". "Ora, meu bom Daniel, nunca leste as Escrituras? O que justifica o sofrimento de Lucas é o mesmo sofrimento que justificou o sofrimento do Senhor na solidão do deserto e tentando por quarenta dias e quarenta noites pela força do mal. Há alguma coincidência, meu bom Daniel?" Respondeu-lhe o anjo do Senhor. "Sim, na bíblia, está escrito!", concluiu o agora festivo anjo.
"Em seguida, Jesus foi conduzido pelo Espírito ao deserto para ser tentado pelo demônio. Jejuou quarenta dias e quarenta noites. Depois, teve fome. O tentador aproximou-se dele e lhe disse: Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães. Jesus respondeu: Está escrito: Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus", segundo está escrito em Mateus.
"Tereis muito cuidado em praticar tudo o que hoje vos prescrevo, para que possais viver e multiplicar-vos, e entrar na possessão da terra que o Senhor jurou dar a vossos pais. Lembra-te de todo o caminho por onde o Senhor te conduziu durante esses quarenta anos no deserto, para humilhar-te e provar-te, e para conhecer os sentimentos de teu coração, e saber se observarias ou não os seus mandamentos. Humilhou-te com a fome; deu-te por sustento o maná, que não conhecias nem tinham conhecido os teus pais, para ensinar-te que o homem não vive só de pão, mas de tudo o que sai da boca do Senhor. Tuas vestes não se gastaram sobre ti, e teu pai, não se magoou durante estes quarenta anos. Reconhece, pois, em teu coração, que assim como um homem corrige seu filho, assim te corrige o Senhor, teu Deus. Guardar s os mandamentos do Senhor, teu Deus, andando em seus caminhos e temendo-o. Porque o Senhor, teu Deus, vai conduzir-te a uma terra excelente, cheia de torrentes, de fontes e de águas profundas que brotam nos vales e nos montes; uma terra de trigo e de cevada, de vinhas, de figueiras, de romãzeiras, uma terra de óleo de oliva e de mel, uma terra onde não será racionado o pão que comeres, e onde nada faltará; terra cujas pedras são de ferro e de cujas montanhas extrairás o bronze. Comer à saciedade, e bendirás o Senhor, teu Deus, pela boa terra que te deu. Guarda-te de esquecer o Senhor, teu Deus, negligenciando a observância de suas ordens, seus preceitos e suas leis que hoje te prescrevo. Não suceda que, depois de teres comido à saciedade, de teres construído e habitado formosas casas, de teres visto multiplicar teus bois e tuas ovelhas, e aumentar a tua prata, o teu ouro e o teu bem, o teu coração se eleve, e te esqueças do Senhor, teu Deus, que te tirou do Egito, da casa da servidão. Foi ele o teu guia neste vasto e terrível deserto, cheio de serpentes ardentes e escorpiões, terra árida e sem água, onde fez jorrar para ti água do rochedo duríssimo; foi ele quem te alimentou no deserto com um maná desconhecido de teus pais, para humilhar-te e provar-te, a fim de te fazer o bem depois disso. Não digas no teu coração: a minha força e o vigor do meu braço adquiriram-me todos esses bens. Lembra-te de que, é o Senhor, teu Deus, quem te dá a força para adquiri-los, a fim de confirmar, como o faz hoje, a aliança que jurou a teus pais". São as lições do Deuteronômio.
Olhando ainda Lucas já refletido na luz do luar, o anjo do Senhor disse: "Ainda se faz noite no seu deserto...".
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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