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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sexta-feira, 3 de setembro de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 95

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 95

Rangel Alves da Costa*


Os dias se passavam sem tal situação mudar. Lucas até procurava evitar ir até à cidade para não encontrar nenhum dos amigos nem estar ouvindo explicações e justificativas às escondidas desta ou daquela pessoa. Sabia os motivos de terem se afastado do barracão e isso bastava. Não era por culpa nem por desejo deles, sabia muito bem. O problema era ter de sofrer ainda mais com cada olhar, com cada palavra, com cada gesto. Por isso mesmo era melhor evitar.
Fazia o que podia para não deixar tudo acabar de vez. O mato quando avança, a poeira quando toma conta e as portas começam a estar sempre fechadas são sempre motivos para que a fome avassaladora de destruição do tempo chegue para exigir o seu quinhão. E de repente já está tudo feio, imprestável, se acabando de vez.
Mas o anjo do Senhor cuidou de fazer com que Lucas retomasse um pouco do prazer em cuidar do que havia construído e do que era seu. Nem tudo que havia construído era completamente seu, nem o que possuía como seu, nem ele mesmo era seu, vez que ninguém pertence a si mesmo. Mais do que ninguém o anjo sabia disso.
Nas brumas que sempre estão presentes mesmo nos dias mais ensolarados, Ester sempre rondava onde Lucas estava, tentando aparecer-lhe por um instante, dizer-lhe coisas, como se fosse um compromisso com as verdades que ele ainda tinha de saber. Porém o anjo nunca permitiu que ela se manifestasse além de miragens não visíveis aos olhos dos que estão sobre a terra.
O rapaz não deveria ser atormentado mais ainda, pensava o ser de luz enquanto mandava de volta aquela alma renitente e inconformada. Ademais, sabia que as palavras que ela poderia expressar, mesmo sem ser vista, serviriam somente para confundir, amedrontar e entristecê-lo ainda mais, pois Ester ainda não havia sido completamente depurada dos seus erros terrenos para alcançar o poder de aparecer perante os vivos e se manifestar, fazer ou dizer sobre o bem. Não, na balança dos que levavam nas costas o fardo dos erros na terra, ela estava pendendo de um lado para o outro, a qualquer sorte dos ventos superiores, que num único sopro poderia traçar de vez seu destino eterno.
Cumprindo seu papel de anjo, o ser de luz não podia deixar de zelar pelo seu protegido. Estava ali para guardar e proteger Lucas, mesmo que não tivesse o poder de guiar os seus passos ou servir-lhe de escudo, mas apenas como aquele que faz chegar a verdade e faz chegar na mente e no pensamento o sopro bom do encorajamento, da luta para construir e fazendo mais iluminada e visível os caminhos do bem.
Se Lucas quisesse ferir alguém não poderia impedir; se quisesse, num instante de revolta e angústia, quebrar a cruz da pracinha em mil pedaços, não poderia impedir; se quisesse passar um trator por cima do barracão não poderia impedir; se quisesse ou tencionasse tirar a própria vida não poderia impedir.
Anjos não impedem nada, não têm o poder de fazer com que a mão do homem se recolha ou se esconda. Não, nada disso. Anjos guiam, protegem, iluminam; fazem com que a mente se ilumine para o bem, apontam insistentemente os melhores caminhos, seguem junto por este caminho para afastar as coisas ruins que estão por todo lugar, sopram virtudes no coração e fazem escorrer pelo corpo o óleo iluminado da proteção.
Ademais, quando o anjo é superior, basta a luz que o acompanha para afastar para longe as maldades que sempre procuram desafiar o bem. E quem é bom consigo mesmo e com o próximo sempre tem e terá esse anjo superior ao seu lado, pois os seres de luz fazem moradia na casa/espírito dos que são iluminados. E não há noite ou treva que apague essa luz...
Assim, o anjo não permitiu que o espírito mal resolvido de Ester ficasse rondando Lucas nem que chegasse aos ouvidos e olhos dele qualquer palavra ou visão. Mas o mesmo não ocorreu quando Padre Josefo apareceu para transmitir uma mensagem ao seu amigo. O anjo permitiu a passagem por entre as névoas e a chegada perante o silêncio que fez surgir.
E a voz que chegou até Lucas era tão clara e inconfundível que parecia que o velho sacerdote estava ao seu lado. Não teve medo, não estremeceu, o espírito já estava pronto para a visita, e apenas ouviu:
"Enfim chegou o grande dia, amigo Lucas. Mas os dias que antecedem o grande dia serão dias de fúrias e tempestades. No mar agitado, nas ondas assustadoras do desconhecido e nos cantos vorazes das sereias, estarão as oportunidades para mostrar o grande marinheiro que és. E haverá um porto à sua frente como poderá haver o abismo a seus pés. A vela dentro do barracão nunca mais foi acesa Lucas. Vai, acende a vela Lucas. Nunca deixe que a chama se apague..."
Pelo ar, as palavras do Padre Josefo eram quase música, bálsamo de madeira do oriente, incenso no altar do Senhor. E no instante seguinte, feliz e como que renascido, foi acender a vela.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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