TEMPO BOM: INFÂNCIA
Rangel Alves da Costa*
Afirmei numa página anterior que o doce descompromisso que temos na inocência da meninice é o único compromisso que temos de guardar para a vida inteira, como prova de que um dia tivemos plena liberdade de ação. Depois disso, depois da inocência dos primeiros anos de formação e crescimento, tudo na vida se transforma em fases, períodos, estágios. O que mais dói é que tudo se resume em idades, em anos que, paradoxalmente, são idades novas que nos tornam mais velhos e vão conduzindo para o fim da existência.
O que seria, então, a vida, se em meios às dores e aflições que os anos trazem, não restasse o doce sabor das lembranças da inocência, da infância, de um passado que de tão bom e bonito nos faz entristecidos? Como diria Drummond, chore não que a infância está perdida, a mocidade está perdida, mas a vida não se perdeu...
Contudo, como tudo na vida é percurso, é caminho, não tomamos mais banho junto com os nossos pais porque já estamos grandinhos, já sabemos que não é bom crianças ficarem tomando banho junto com adultos desnudos. Temos consciência disso porque não somos mais inocentes e a nossa idade já permite muito bem distinguir o que está certo e errado. Assim diziam porque nossa fase agora era de infância.
Me pergunto, meu Deus, se a infância é uma fase na vida ou uma bolha de sabão que é formada com um sopro e vai subindo linda sem norte nem sul em direção a qualquer azul? Vejo a infância refletida numa bolha de sabão, com seus tons incandescentes, luminosos, refletindo todas as cores que a cercam. E porque a infância é linda, é imensa, é solta pelo ar e pela vida e de repente: splash!...
Quem dera se a infância não se transformasse num conceito: o período da criança que se estende até a adolescência, em que vão se desenvolvendo as percepções de mundo, as transformações físicas, as responsabilidades e os medos. O problema, contudo, não é o mundo novo que vai se mostrando voraz a partir da infância – o que não ocorria na fase da inocência -, mas sim a obrigação que as crianças passaram a ter de se tornarem adultos antes do tempo e a todo custo.
Impor características de adulto a uma criança é o mesmo que tratar com senilidade um adolescente. Ou os adultos esquecem que foram crianças, não sentem saudades das suas traquinagens e brincadeiras? Por isso que trago comigo meu menino que ainda sou, a criança que ainda sou, o danado que ainda sou. E quem me dera o sertão pertinho de mim, bem aqui ao meu lado, para tudo ficar mais festivamente real.
Tempo bom... Infância é a realidade que nunca deveria ser descoberta. Digo isso porque eu vi, vivi a infância, fui a infância e dela não irá me afastar nenhuma distância. Meninos, eu vi!...
Conheci o rei do gado, grandes criadores, banqueiros e milionários. Acreditem. Todos eram crianças como eu e já eram isso tudo. Cada ponta de vaca ou de boi representava também o próprio animal, e eram espalhadas nos quintais – tidos como pastos ou fazendas – formando grandes rebanhos. Assim, surgiam grandes fazendeiros, possuidores de muitos animais, e existia também o rei do gado, que era aquele que conseguia juntar mais pontas em sua propriedade.
Qualquer um podia ter dinheiro; muitos eram ricos e alguns eram milionários. Naquela época, pelo meio das ruas, nas proximidades dos bares, em qualquer lugar, sempre havia meninos procurando dinheiro. Era isso mesmo, dinheiro de papel de carteira usada de cigarro continental, astória, hollywood, gaivota, vila rica etc. Encontrada a carteira vazia, o papel era cuidadosamente dobrado no cumprimento de uma nota e virava dinheiro.
Dependendo da marca do cigarro, cada nota possuía um valor diferente; se o papel fosse de um cigarro caro e difícil de encontrar o seu valor era muito maior. Havia as trocas, os trocos, enfim, toda a movimentação de um dinheiro normal. Era também muito usado para comprar bois, vacas e outros produtos fabricados pela gurizada. Conheci muitos meninos que tinham sempre poucas notas e outros que tinham o maior prazer em mostrar maços e mais maços. Desde aqueles tempos a vida é assim.
Conheci também grandes vaqueiros, destemidos, e bois valentes, ferozes. Nas noites sertanejas de lua cheia, a meninada se juntava e escolhia quais seriam daquela vez os bois que iriam se esconder nas matarias da vizinhança, em locais delimitados, que não fosse de acesso muito difícil. Muitos bois ficaram famosos pela destreza e velocidade, e os moleques que faziam tais papéis muitas vezes tiveram que suportar serem chamados pelo nome do boi por um bom período: valente, fogoso, raio de luar!...
E assim, dois ou três garotos corriam e iam procurar moitas onde ficavam silenciosamente escondidos. Alguns minutos após e saíam os vaqueiros em correria, cada um montado no seu cabo de vassoura ou pedaço de pau, como a galopar num bom alazão sertanejo. O pega-de-boi da noite sempre terminava com os espinhos torturando os pés da criançada.
Quando não eram nos quintais e nas ruas de Poço Redondo, as brincadeiras eram transferidas para os arredores, para as proximidades atrativas. Em época de chuva, quando chovia muito lá pelas bandas da cabeceira do riacho Jacaré, esse riozinho que ladeia a cidade virava uma festa para a meninada, mesmo sabendo da sujeira das águas novas e do perigo dos turbilhões traiçoeiros de alguns pontos onde grandes pedras formavam verdadeiras panelas.
Muitos saíam logo cedinho de casa e só voltavam quando os pais estavam na beira do riacho chamando e xingando de nome feio. Voltavam vermelhos do sol e ficam ainda mais ardidos pelas chicotadas que muitos tomavam no percurso até em casa. Eram colocados de castigo, mas quando os pais iam procurá-los não os encontrava mais em nenhum canto da casa. Tinham saído escondido para brincar novamente. Até os adultos tinham medo.
Essa também era a melhor época para armar arapucas, caçar passarinhos, pois tempo de chuva, de rolinhas, coleirinhos e azulões alegres de galho em galho. Diferentemente de hoje, naqueles idos o que não faltava era passarinho. Não podia ser diferente, pois as árvores eram muitas e estavam em todos lugares, nos quintais, cercados, nas pequenas e grandes propriedades.
Em cada canto tinha um umbuzeiro, goiabeiras e pés de caju eram fáceis de encontrar. No quintal da minha avó tinha um pé de goiaba, existente também no quintal vizinho de Delino. No quintal de João de Terto a grande atração era um pé de umbu-cajá. Toda meninada ia roubar cajus ao lado da casa de Luis Doce, nos fundos do campo de futebol. Dezenas, centenas, eram as árvores frutíferas espalhadas nos arredores da cidadezinha sertaneja.
Num contexto como tal, onde a natureza servia também como brinquedo para a gurizada, catar frutas ou pegá-las às escondidas era mais que normal. Muitas vezes, quando o menino ia colher frutas ia também verificar se algum passarinho havia caído nas arapucas armadas nas árvores próximas aos tanques e barragens.
Aproveita-se a ocasião e a peteca ou baleadeira era logo colocada em ação. Eram constantes as disputas para saber quem tinha melhor pontaria. Esticava-se bem a borracha por entre a pequena forquilha de madeira e mirava-se no tronco da árvore, na fruta pendurada e, muitas vezes, na pobre rolinha: stlibum! E era uma vez uma fogo-apagou.
Brinquedo fabricado, comprado na capital, era artigo de luxo que cabia a poucas crianças. Quem possuía gostava de fazer inveja aos outros, o que muitas vezes teve por conseqüência o destroçamento imediato do caminhão de plástico ou da boneca que fala. Também a maioria da molecada não trocava o carro-de-boi puxado por ponta de vaca, o carro-pipa feito com lata de óleo, o carrinho de madeira nem o cavalo de pau por nada nesse mundo.
Por mais que brinquedos novos fossem surgindo, comprados na capital ou vendidos no mercado em dias de feira, incrível era o desprezo da maioria por estes e o prazer cada vez mais constante de construí-los artesanalmente, pelos cantos ou nos quintais da casas, sozinhos ou ajudados por amigos da mesma idade. Lascas, restos de madeira, latas, frascos, borrachas, plásticos, tudo servia como material essencial para as construções inventivas dos pequeninos artesãos.
Tal qual colonizadores, muitos pais quiseram introduzir em suas casas bois de barro pintados, carros de madeira envernizada e outros instrumentos lúdicos fabricados em série. Até que tinham aceitação, pois a meninada brincava com tudo, mas era diferente, não conseguiam transmitir o mesmo prazer do que divertir-se com aquilo que era construído manualmente, juntando pedaço a pedaço, cuidadosamente, prazerosamente.
Dentre as muitas outras brincadeiras próprias para meninos - o que não implicava que as meninas também pudessem participar - me vêm à lembrança os passatempos divertidos com bolas de gude, ou bolas de “marraio” como muitos chamavam, e os jogos de futebol de botão com jogadores feitos de tampas de garrafas ou de plástico derretido.
Muitos garotos conseguiam juntar dezenas e até centenas de bolas de gude brincando e apostando ao mesmo tempo. De uma certa distância, com a mão próxima ou apoiada no chão, a bola de gude colocada na parte lateral do dedo indicador e impulsionada pelo dedo polegar, se o arremesso fosse certeiro, com a bola caindo diretamente no buraco, a rodada estava ganha; se não fosse possível, na próxima jogada procurava acertar a bola que já havia sido arremessada pelo colega. Existiam verdadeiros craques nesse esporte infantil, bastava ver os sacos de bolas que conseguiam ganhar.
Também fui jogador. De bola de pano e de tudo que viesse à minha frente. Fui vencedor e fui perdedor, mas jamais deixei de ser campeão na vivência daqueles momentos. Infância, infância... Teu troféu guardo nos meus olhos tristes e na minha saudade. E que saudade boa meu Deus!...
continua...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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