SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 4 de setembro de 2010

TREM QUE VEM (Crônica)

TREM QUE VEM

Rangel Alves da Costa*


Pelos trilhos na terra, despontando nas montanhas, apitando atrás das serras ele vem, ele vem, ele vem. Cansado, ofegante, distante, mais perto ele vem, ele vem, ele vem, ele vem, Lá vem a fumaça, lá vem o apito, lá vem a saudade, lá vem a estação, ele chega. É o trem, que depois de fazer a última viagem e ficar esquecido nos fundos de uma estação qualquer, não é mais o trem, sou eu, que corro sem trilhos porque vida vem, vida vem, vida vem, vida vem...
Um dia cheguei no trem, e o bicho veio de longe, bem longe, de um sertão que não esqueço porque o sertão era meu. Quase não saio de lá porque nada queria deixar, nem a manhã nem o sol, nem o mato nem o espinho, nem a fonte nem o passarinho, nem os campos nem as catingueiras, nem a seca nem o suor, nada queria me deixar partir. Ainda tinha uma tal de família que tive de trazer no coração pra não morrer de saudade. Ninguém me disse não, mas também tinha o meu amor que ficou na fresta da janela chorando. Esqueci de trazer uma lágrima para juntar ao mar de agora...
Quando a gente sobe no trem esquece que a vida é uma estação e cada curva é um chegar. A última estação agora não, pois essa maldita dá sumiço no passageiro e nunca mais nenhum embarque ou desembarque. Antes disso Deus há de deixar olhar o quanto é bom viajar por esse mundão e ver tudo que é bonito, parecendo que os olhos são mentirosos ou a gente é que não conhece nada dessa vida. Nunca vi filme mais bonito do que esse da janela do trem.
Um dia eu olhava tudo pela janela do trem e vi uma coisa que fiquei sem acreditar. Primeiro vi uma casinha, depois um animal, depois uma menina, depois um riacho e depois uma flor, uma nuvem, um passarinho, uma estrada, uma serra, um toco, um tronco, uma fruta madura, um cavalo morto, uma janela fechada, uma janela aberta, uma porta, um destino, um menino, uma, rua, sorriso, um céu, uma vida. E eu nunca tinha visto a vida, e quando vi que a vida existe, que tudo aquilo existe de verdade fiquei sem acreditar. E como era tudo bonito, poético, triste, alegre e belo, e aí me disseram que tudo é assim porque é a vida. E eu não acreditava, mas existe a vida. Agora acredito...
Noutro dia, no vagão solidão que eu viajava e quando já entardecia no trem, alguém mais triste e parecendo mais solitária do que eu sentou bem ao meu lado. Não falamos nada porque estávamos na solidão, porque éramos solidão, e não há nenhum sentido falar quando se está ou quer ficar na solidão. Solidão diálogo não é solidão, é fuga. Se não houver silêncio na solidão, também não há porque completar-se a solidão.
E nesse silêncio todo, olhando as paisagens e a vida, percorremos aquele trecho como sendo a melhor viagem do mundo, pois nem falei sobre angústias nem ela sobre motivos, apenas nos distanciamos como duas pessoas que entendem a solidão uma da outra. Na estação seguinte, já escurecendo, levantou e se despediu ao modo dos solitários: sem nenhum gesto ou palavra sequer. Mas no outro dia, logo ao nascer da manhã, enxerguei ao meu lado um pequeno papel que talvez tivesse caído do bolso ou da bolsa da solitária. E como eu já não estava tão solidão e angústia, coloquei o papel diante dos olhos e pude ler:
"Quando eu não tinha destino, tinha um trem. Chamava a fumaça da caldeira porque achava bonito o fumaçar embranquecido; chamava mais de perto o apito porque queria ouvir a pressa e o passo dos que tem de partir. Tudo está muito distante, muito diferente daquela estação onde havia abraços e lágrimas, lenços acenando distantes e a curva que doía no olhar de quem ficava. E isso já faz muito tempo, quase cem anos, quando subi pela primeira vez no trem. Quase cem anos se passaram da minha primeira viagem e lembro como se fosse ontem. Como ontem, quando sentei ao lado do meu amigo na solidão e ele soube cumprir seu papel de solitário. Nem percebeu que eu estava ao seu lado, que eu existia, como realmente não existo mais há mais de trinta anos. E só vou ao trem para viver a solidão como fiz há quase cem anos..."




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

2 comentários:

Julio Cesar disse...

Creio que poucos terão a oportunidade de sentir no coração essas suas palavras...
Só quem, um dia, viajou de trem. Não esses trens urbanos, mas aqueles intemunicipais, de longas viagens pelo interior, vendo casinhas, vacas, flores, plantações e... estações com lenços esvoaçando ao vento.
Lembrei-me da infância, das férias no interior...
Obrigado Rangel

Toninho disse...

E assim ponguei neste trem como se pongava no bonde.Eita saudade do amigo trem, pois mineiro fala assim tal a sua intimidade com o trem,rsrs.Como um bom mineiro uai eu tambem amei meus trens e viajei por eles, sentindo o cheiro da fumaça, amando o apito na curva e saber que chegava em uma estação. Viajar de trem e ver de trem é uma magia, que só quem fez pode entender.Esta coisa da serpente cortando as terras os vales.E hoje a maria fumaça é apenas um monumento depedrado na porta de minha cidade Itabira-MG, como diria Drumond e como dói! Um abraço amigo, bela postagem.