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A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



segunda-feira, 27 de setembro de 2010

TEMPO BOM: OS SONHOS (Crônica)

TEMPO BOM: OS SONHOS

Rangel Alves da Costa*


Na inocência os sonhos sumiam pelas névoas e nuvens, voejando pela limpidez dos tempos e pairando encantados diante dos doces olhos do sonhador. Na infância os sonhos se escondiam alegres, adormecendo junto com o sonhador, para acordar festivamente entre bolas, petecas, bonecas, carrinhos, campos e descampados. Sonhos de anjos, sonhos alados...
Na mocidade os sonhos cismaram em aparecer de verdade, porém num misto de ludismo e preocupação, pois dali em diante eles seriam constantes nas noites e nos dias daqueles que se segurariam nas suas asas para continuar sobrevivendo. É, pois, a partir da mocidade que os sonhos surgem como necessidade, tanto para deflagrar os desejos escondidos como para cimentar os objetivos de vida. No pesadelo da vida, sonhar é preciso...
Logo após, na juventude propriamente dita, os sonhos se misturam aos pesadelos, numa luta maniqueísta, onde o medo e a coragem se digladiam para ver quem consegue se instalar melhor na mente de cada um. Nessa fase os sonhos surgem diariamente para lembrar à mente do sonhador que a vida é cheia de perspectivas e de saídas inesperadas. Outras vezes somente no sonho é possível viver o impossível da realidade.
Já na fase adulta os indivíduos se dividem entre a realidade e a obrigatoriedade em sonhar, vez que ninguém suportaria ter a mente fechada para os acontecimentos cotidianos sem deixar uma porta aberta por onde possa entrar aquilo que de melhor imagina e deseja. Ora, fez de tudo, dá um duro danado, trabalha muito mais do que seria suficiente para garantir uma sobrevivência digna e mesmo assim nada é conseguido, então chama o sonho para ele dizer que o amanhã será bem melhor.
Não vou entrar no mérito da diferença entre o sonho próprio do adormecer e o sonho que se sonha de olhos abertos. Já cuidei disso em outro texto (Sonhos que vivem e que morrem), com as seguintes impressões:
"Por outro lado, enquanto ato de sonhar de olhos abertos, o sonho é comumente visto como a utopia, imaginação sem fundamento; ideia ou ideal defendidos com paixão; visão do irrealizável; desejo que acompanha a pessoa precisamente naquilo que tem dificuldade de alcançar; ficção comparável a um sonho e a que muitas pessoas se entregam mesmo acordadas; coisa vã, fútil, transitória, sem consistência, sem alcance, sem duração; coisa vaporosa e inconsistente; visão de desejos reprimidos; recordação de coisa efêmera e que pouca impressão deixou na alma; ideia com a qual nos orgulhamos; idéia que alimentamos; pensamento dominante que seguimos com interesse ou paixão.
Os sonhos sonhados após o adormecer são sonhos eternos, pois se realizam dentro daqueles objetivos do momento, do enredo mentalizado e do seu alcance, mesmo que distorcidos e incompreendidos ou recortados pelo acordar repentino. Estes sonhos não morrem, pois podem voltar sempre com novas nuances, novas roupagens. Diferentemente dos sonhos sonhados acordados, que são desacreditados todas as vezes que as pessoas veem cada vez mais distante aquilo que queria ao seu lado. Estes são os sonhos que morrem, e são velados pela descrença, pelo desencorajamento, pela sensação de impotência e pela perda de vontade de lutar".
Certo é que nas fases iniciais da vida, os pais das crianças é que tecem os sonhos no lugar destas. Espalham perante os familiares, amigos e até estranhos que meu filho vai ser doutor da medicina ou doutor advogado; minha filha vai ser pediatra, que é uma profissão médica bonita para mulher; a minha já vai ser juíza, diz outra; ela novinha já tem um jeitinho de modelo, acho que ela vai fazer muito sucesso nas passarelas e sair em muitas capas diz revistas, sonha outra.
As opiniões e os desejos são muitos e os mais imprevisíveis. Desde novinha que minha filha parece uma atriz, joga uma. Deixo que o meu filho mesmo decida, diz outra. Não adianta querer impor que ele escolha essa ou aquela profissão, completa. E diz ainda: Como não podemos criar o que eles têm que sonhar, não devemos interferir nas suas escolhas.
Toda profissão exercida com dedicação torna-se bonita, seja aquela desconhecida e que ninguém dê nenhum valor até aquela tida como mais poderosa pela sociedade. Segundo o que penso, afirma outra, muitas vezes deixamos de reconhecer e dar o merecido valor ao professor, enfermeiro, carteiro, porteiro, jardineiro e até mesmo à profissão do marido. O que ele faz então?, indaga a amiga. Ele é juiz de futebol, mas nasceu para ser juiz de direito. Por um acaso da vida...
Lembra daquela senhora que ajudava às pessoas a escreverem cartas para os seus parentes no filme Central do Brasil, pois bem, existe uma profissão mais doce e mais humana do que aquela? Tão simples, muitas vezes sem nenhum intuito de lucratividade, mas exercida como se fosse um ofício humanitário e de valorização extrema dos indivíduos que não alcançaram as graças da alfabetização. Uma falou e todas concordaram.
Pessoalmente, já ouvi muito os mais velhos dizerem que antigamente o sonho maior das famílias era que os seus filhos se dedicassem a três ofícios principais: religioso, profissional liberal do direito ou da medicina e o comércio. Por muito tempo as famílias eram invejadas quando nos seus seios existiam padres, freiras, médicos, advogados ou grandes comerciantes. Ter um filho padre ou freira era o supra sumo da valorização familiar. E muitas famílias tiveram três ou mais filhos que escolheram como destino a vida sacerdotal.
Nos tempos mais antigos, quando os cafezais enfeitavam os terreiros das grandes fazendas e iam ganhando terreno a perder de vista, os senhores bigodudos e as senhoras balofas viviam a juntar somas e mais somas de dinheiro para enviar para os seus filhos que estudavam na capital para se formar doutor, principalmente em ciências jurídicas. Dando aos filhos uma posição de destaque na sociedade através do diploma e do anel grosso importado, procuravam se redimir da ignorância e da vida voltada unicamente para a usurpação, o escravismo e a esbórnia.
A febre do direito correspondeu à febre do latifúndio. A riqueza acumulada através da exploração, era destinada em parte para que os doutorzinhos - na maioria ludibriadores dos sonhos dos velhos - se esbaldassem em tabernas, nos cafés requintados, em cabarés, com o luxo das bebidas e charutos importados e prostitutas de nomes afrancesados. Contudo, pelo poder do dinheiro, mais cedo ou mais tarde recebiam o anel e o canudo de doutor das letras jurídicas. Não advogavam porque não sabiam, mas tinham lugares garantidos nos grandes salões e alcovas das madames das melhores famílias.
À guisa de exemplificação, tais aspectos servem para demonstrar que cada sociedade sonha segundo o seu tempo. Como observado, sempre existirá um pai querendo o melhor para o filho, se esforçando ou não para tal, mas sempre almejando que ele alcance uma boa formação profissional ou seja alocado com dignidade no mercado de trabalho. No futuro, a continuidade do sonho passa a ser de inteira responsabilidade daquele que quer sonhar mais alto.
Existe a história daquele que se contentava apenas com o nada que tinha porque se negava a sonhar. Conheci uma pessoa que era assim. Quando alguém dizia que o sonho maior que tinha era comprar uma casa, ele dizia que trabalhasse para adquirir porque o sonho não ajudaria em nada. Se outro dizia que o sonho era ver sua mãe com saúde, dizia que sonhar não curava ninguém, a não ser um bom médico.
Um dia perguntado o que mais queria que acontecesse na sua vida, baixou a cabeça e disse que era poder sonhar como as outras pessoas, pois os seus dias e noites não passavam de pesadelos em tanto trabalhar e não ter perspectiva nenhuma na vida. E o amigo disse a ele que não precisava se preocupar não, bastava acreditar que as coisas boas aconteciam que os sonhos voltariam e muitos deles seriam realizados. E por que não todos?, perguntou ele. Ora, é pra você continuar sonhando, respondeu o amigo.
Verdade é que ninguém vive sem planejar, sem pensar no melhor, sem sonhar. É próprio do ser humano estar descontente com o que possui ou não sentir-se realizado com o que tem, e daí procurar sempre adquirir mais e mais. Muitas vezes, um dia sonhou em ganhar a primeira bicicleta. Ganhou a bicicleta, depois adquiriu uma moto e o sonho seguinte foi adquirir um carro. O sonho agora é um carro novinho, todo equipado, e assim por diante.
Esse tipo de sonho é muito diferente da imaginação que se contenta com o mínimo. Conheço sertanejos cujo sonho maior é ter o pão do dia seguinte, é que chova depois que apila o grão com o pé, é que o sol sertanejo não cisme em se transformar em fogo, é que a cobra não morda a única vaquinha que tem, é que o filho arrume uma roupinha para frequentar a escola. Conheço sertanejos que também sonham grande demais: querem paz e saúde para os seus e para os demais.
Vi a menina em flor tristonha sonhando na janela; vi a flor em menina alegre sonhando na janela; vi a menina linda esquecendo de estudar porque estava sonhando coisas; vi a menina sonhando que era princesa e disseram que o príncipe chegou no sonho; vi a menina chorando porque o tempo passava e os sonhos não eram realizados, o príncipe sumiu e a idade mandava tirar as tranças do cabelo. Mas não chore menina, pois continuas Fascinação, em canto e verso:

Os sonhos mais lindos sonhei
De quimeras mil um castelo ergui
E no teu olhar
Tonto de emoção
Com sofreguidão
Mil venturas previ
O teu corpo é luz, sedução
Poema divino cheio de esplendor
Teu sorriso prende, inebria, entontece
És fascinação, amor.

Não sei se vivo acordado ou durmo, mas quando sonho ouço a voz de Shakespeare: "Há quem diga que todas as noites são de sonhos. Mas há também quem garanta que nem todas, só as de verão. No fundo, isto não tem muita importância. O que interessa mesmo não é a noite em si, são os sonhos. Sonhos que o homem sonha sempre, em todos os lugares, em todas as épocas do ano, dormindo ou acordado".



Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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