SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



sábado, 4 de setembro de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 96

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 96

Rangel Alves da Costa*


Lucas, Lucas, o que é a vida senão vencer desafios para fazer valer a dádiva divina? O que é a vida senão um dia em que pessoas acordam para chegar felizes ao anoitecer? O que é a vida senão momentos de luz e de escuridão, do mesmo jeito que inexoravelmente ocorre no mais bonito dia de primavera? O que é a vida senão a chance que se tem de caminhar, agir e falar, dentro daquele período concedido entre o silêncio do ventre e o silêncio da morte? O que é a vida senão o sol que se levanta e a lua que cai e não se chocam nem se desafiam porque sabem que amanhã o percurso deverá ser feito novamente? O que é a vida senão estar atento aos chamados vindos de todos os lados porque o bem está em algum lugar e o mal também estará? O que é a vida senão a inconsciência da existência e a consciência da morte? O que é a vida senão a sede contínua diante de um único pote que um dia vai se quebrar? O que é a vida senão o prazer da saudação na chegada e a tristeza e a dor no instante da despedida? O que é a vida senão o instante, o presente, o momento, o segundo, pois o próximo minuto não começará a ser contado sem este segundo? O que é a vida senão esse nada que somos, esse tudo que somos, esse tudo porque não sabemos de nada? O que é a vida senão andar sobre a mesma terra onde um dia iremos repousar? O que é a vida Lucas, mas o que é mesmo a vida Lucas? Mil perguntas na mente do rapaz que agora estava apto para pensar.
Dentro de casa, com o espírito iluminado e cheio de alegria no coração, até que cantaria uma canção se soubesse a letra completa de uma música. Mas não precisava não, pois sonatas ao piano e violino ecoavam pelos ares e era como se uma orquestra estivesse ali. Quem viessem as valsas, os tangos, os boleros. Como deveria ser doce e gratificante correr pelos salões nos passos das valsas vienense, pois iria se banhar no Danúbio todo azul ou singrar pelos mares atrás de uma rapsódia, de uma cantata, de um minueto, de um adágio, de um intermezzo, de um prelúdio. Viajaria com a cavalaria rusticana, procuraria saber como falava Zarathustra, subiria no galope das Valquírias. Até a Marcha Fúnebre faria bem ao momento, mas bom mesmo seria ouvir Jesus Rei dos Homens. Como era bom estar feliz novamente, sonhar, pensar, viajar, viver, constatava Lucas.
Na manhã seguinte não deixaria nenhum pé de mato rasteiro ao redor de sua casa e nos outros arredores; limparia a pequena horta, remexeria a terra, tiraria as ervas daninhas, faria com que as plantas tivessem mais prazer em verdejar e crescer; chamaria um eletricista para puxar fiação e colocar lâmpadas ao redor do barracão e na praça da cruz; faria com que tudo ficasse limpinho, bonito e organizado. A casa também precisava de uma pintura nova. Assim que o dinheiro desse providenciaria.
Pequenas coisas às vezes causam uma grande transformação, tornando tudo mais atraente e convidativo. Se as pessoas voltassem, se os amigos pudessem retornar, tudo bem, pois se sentiriam muito melhor; mas se não fosse possível ficaria feliz do mesmo jeito, pois ali era o seu lar e a sua vida. Entretanto, sozinho era muito difícil de fazer o que desejava. Precisava de ajuda, de algum amigo que tivesse a coragem de ir até ali para ajudá-lo nos serviços, nas mudanças nisso e naquilo, no remover e modificar. Mas infelizmente, ao menos naqueles dias, não poderia contar com ninguém, tinha certeza.
Tomado ainda por mil pensamentos, deitou para acordar cedinho e colocar logo em prática os seus planos. Acordou no meio da noite com alguém batendo à porta. Primeiro bem leve, depois mais forte e até com força. Era sinal de que quem chamava tinha algo muito importante a fazer ali, principalmente em se tratando daquela hora da noite.
Assim que ouviu o barulho, Lucas deu um pulo da cama e ainda na porta do quarto perguntou quem era e o que desejava. E a pessoa respondeu do outro lado: "Você não me conhece, mas abra por favor, não tenha medo, pois tenho algo muito importante a lhe falar...".


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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