AMIZADE ETERNA
Rangel Alves da Costa*
As pessoas comuns fazem coisas comuns. As pessoas comuns normalmente deitam, acordam, trabalham, vivem procurando razão para a alegria e felicidade, buscam no amor o alento, caminham pelos caminhos mais conhecidos, fazendo de tudo para vencer as dificuldades.
As pessoas comuns também têm amigos, e muitos amigos, e talvez seja esta uma das maiores e melhores características das pessoas tidas como comuns. João, Pedro, Lucas e tantos outros são assim, e eu também sou assim. Contudo, pessoas existem que mesmo possuindo todos os perfis mencionados, carregam dentro de si e na aparência ainda as faces da tristeza, da solidão, da angústia, daquele ar visível da dor. E tudo porque lhes faltam amigos, amizades, pessoas que possam compartilhar da palavra e dos instantes.
Conheço alguém que é bem assim. Aliás, conheço demais essa pessoa que é bem assim. É pessoa comum que dialoga com a vida basicamente através do que sente pelas situações vivenciadas, do que escreve e do que lê. Vive no labirinto cotidiano porque a porta se abre sozinha e diz que ele tem de sair, caminhar, viver, resolver seus problemas; vive escrevendo para que um dia alguém possa dialogar com o que escreve; e vive lendo porque os livros são os únicos amigos que encontra a qualquer instante e principalmente nos momentos de solidão.
Assim, depois que a porta abre e novamente é fechada, ao entardecer e noite adentro, muitas vezes varando pelas insônias da madrugada, ele vai ao lugar de sempre reencontrar seus amigos. Acende a luz, por costume deixa um castiçal aceso, coloca um caderno e uma caneta nas proximidades, leva o copo com alguma bebida, coloca para tocar baixinho noturnos e valsas vienenses e depois vai em direção aos amigos fazer o cumprimento com o olhar. A seguir escolhe um amigo especial para dialogar naquele instante e a amizade começa a dar os seus frutos.
Seus amigos moram todos numa estante antiga, de madeira de lei envernizada, dessas que não se encontra mais por aí. É bonita e fica ainda mais agradável pelos seus moradores. São livros e mais livros, alguns deles já bastante envelhecidos e cada vez mais conscientes, outros ainda na mocidade cativante e inteligente, mas todos com seus ares de sabedoria que engrandece qualquer espírito que possa compartilhar dessa amizade.
Após tocar o amigo com a mão, com a outra lhe faz o convite para o diálogo daquela noite e estende o braço em direção à poltrona. A depender do amigo escolhido, nada melhor do que fazer um agrado oferecendo um lanche, um cigarro ou uma bebida. Jorge Amado sempre gosta que lhe ofereça uma bebida forte bem característica do recôncavo baiano ou dos tantos cais de saveiros e velas; quando é coronel do cacau aceita um uísque e um charuto.
Graciliano Ramos chega sempre cheio de tristeza no corpo e nos olhos, faminto e sedento, cansado que vem das lonjuras das vidas secas e das angústias. Drummond é sempre comedido, se contentando em relembrar as montanhas e estradas de Minas e os tempos das riquezas auríferas que deixaram somente uma fotografia na parede. E como dói! Cecília chega doce e suave, melodiosamente poética e encantadora. Um dia ela disse que só queria ter no mato um gosto de framboesa, pra escorrer entre os canteiros e esconder tanta tristeza...
Muitos amigos chegavam acompanhados dos seus filhos. Exupéry chegava voando ao lado do Pequeno Príncipe, que não queria deixar seu Baobá gigante nem sua redoma de vidro. Eleanor H. Porter trazia sua cria instigante e sempre cheia de descobertas e preocupações, chamada Pollyanna. José Mauro de Vasconcelos convidou Zezé pra passear porque o menino não parava de chorar depois que cortaram seu pé de laranja lima. Goethe um dia trouxe um jovem chamado Werther. E foi a última vez que este apaixonado por Charlotte foi visto nesse mundo. Diferentemente de Fernão Capelo Gaivota, que Richard Bach um dia trouxe consigo e ele nunca mais deixou de estar voando ao entardecer por ali.
O solitário não esquece mesmo foi do dia que um amigo de nome Mateus chegou num instante em que estava com extrema tristeza e disse-lhe: "Portanto, eis que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais do que o alimento e o corpo não é mais que as vestes? Olhai as aves do céu: não semeiam nem ceifam, nem recolhem nos celeiros e vosso Pai celeste as alimenta. Não valeis vós muito mais que elas? Qual de vós, por mais que se esforce, pode acrescentar um só côvado à duração de sua vida? E por que vos inquietais com as vestes? Considerai como crescem os lírios do campo; não trabalham nem fiam. Entretanto, eu vos digo que o próprio Salomão no auge de sua glória não se vestiu como um deles. Se Deus veste assim a erva dos campos, que hoje cresce e amanhã será lançada ao fogo, quanto mais a vós, homens de pouca fé! Não vos preocupeis, pois, com o dia de amanhã: o dia de amanhã terá as suas preocupações próprias. A cada dia basta o seu cuidado".
Após ouvir tais palavras, perguntou ao amigo de onde vieram tão sábios ensinamentos. E este respondeu: "Da Bíblia, pois sou amigo, mas somente o livro sagrado é de amizade sincera".
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário