SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

A morada é simples, é sertaneja, mas tem alimento para o espírito, amizade e afeto.



quarta-feira, 15 de setembro de 2010

MEMÓRIAS (Crônica)

MEMÓRIAS

Rangel Alves da Costa*


Parece estranho, mas acredito cegamente que me tornei mais sertanejo depois que os sonhos de estudante me fizeram deixar o sertão, lá pelos meados dos anos 70. De lá pra cá, com gibão, chapéu de couro e sol esturricado no coração, outra coisa não faço senão viver absorvido pelo cheiro da terra, pelos bichos, pelos matos, pela minha gente sertaneja.
No meu coração há um roçado, sim. Terra rica de nutrientes, mas empobrecida pela carência das águas boas da chuva. Mesmo assim, nesse roçado em campo aberto do coração, crio minhas vaquinhas, meu cavalo e meu jegue; pastam dois cabritos, ciscam meia dúzia de galinhas, dois guinés e um pavão; o galo é muito bonito, mas não é meu. Foi emprestado por João Cabral de Melo Neto, depois que ele teceu suas manhãs num poema.
Não podia esquecer da casa simples, humilde, levantada no barro e com pouca telha de tão pequenina. Que imensidão é a moradia quando ela é realmente lar! Dois potes de barro em cima de forquilhas, canecas de alumínio brilhando dependuradas no galho de catingueira que desce do telhado. Não tem água quente não, pois o barro já cozido e temperado do pote depura qualquer impureza, deixa o líquido alvinho, frio e doce como o prazer de matar a sede.
Fogão de lenha tem, panela de barro também; comida graças a Deus nunca faltou; coisa pouca, sem luxo nem regalia, mas nunca faltou, é verdade. E é uma festa quando a lenha vai queimando e as brasas crepitando tendo por cima uma panela avermelhada soltando pelo ar o calorento cheiro de galinha de capoeira. Quando a galinha é gorda não precisa nem botar óleo; de suas banhas vai surgindo um caldo grosso que é de uma gostura sem igual. Em cima do feijão verde de corda, da fava ou de qualquer coisa é de se comer, lamber os beiços e ir espiar se tem mais.
Depois de encher a pança, se o tempo der e o trabalho a seguir não for muito puxado, ainda dá para descansar um pouco na rede. Isso é um mal costume porque cansa muito mais do que descansa, e até que o sertanejo se refaça de novo para ir trabalhar já virou preguiçoso. É melhor não deitar, deixar a rede armada para quando chegar de tardezinha, depois que guardar a enxada, o enxadeco e o machado, depois de chiqueirar a vaquinha e dar comida aos bichos. Aí sim, toma-se uma talagada da branquinha legítima, faz fumaceiro no charuto ou cachimbo e solta um aboio de saudade.
Isso é pras bandas de lá, que tem coisa boa por demais e dá gosto de viver a vida em sua intensidade. Tudo é diferente, tão bonito e tão bom. Amigo quando se tem é de verdade, inimizade também, pois o cabra se autentica no melhor e no pior. Como se diz, ainda há resquícios de gente que serve por bondade, faz da vizinhança um tudo, estende a mão até o cabra estar em segurança. Ao lado do leito anoitece, ao lado da cama amanhece, e só vai embora quando o amigo já estiver com melhoras. Traga um chá, apronte um pará bem forte, esquente uma cuia d'água, traga uma erva cidreira e um mastruz, um sambacaitá ou uma quixabeira de sete luas. É sempre assim...
Toda vez que meu cavalo dispara e me vejo na cancela do curral sertanejo é como se fosse a vida me chamando para viver novamente. Regredir no tempo sem voltar ao passado, só por imaginar que as coisas felizmente não acontecem assim tão rapidamente por lá. Por isso mesmo a felicidade é mais duradoura, as coisas belas para serem apreciadas e a certeza de que se tem de viver conforme os desígnios de Deus. Quem transgride a lei sertaneja paga na medida da desesperança que valha. E vale sofrer mais numa vida já tão sofrida?
Se o meu tio me visse assim com esse gibão da cidade ia ficar abestalhado. Quem já se viu vaqueiro vestido assim, todo de terno e engravatado, só pra fazer medo aos bichos? É não, meu tio, é que por aqui a gente tem que chiqueirar um gado muito mais perigoso, mais arredio, e que só segue a boiada se for no açoite. Por isso é que a gente vive sendo chicotado por esses caminhos de asfalto e sofrimento.
Mas vou voltar meu tio, coloque água na moringa e deixe a cancela aberta que vou voltar...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

Nenhum comentário: