SAIA DO SOL E DA CHUVA, ENTRE...

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terça-feira, 7 de setembro de 2010

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 99

EVANGELHO SEGUNDO A SOLIDÃO – 99

Rangel Alves da Costa*


Pelo peso dos materiais e objetos que formavam a estrutura do teto, desabar em cima de alguém não era suficiente para causar nenhum dano mais grave, mesmo que estivessem bem molhados por causa da chuva. O problema é que o teto não desabou pela fragilidade na cobertura do barracão, mas sim porque uma bola grande de água caiu das nuvens juntamente com os pingos e bem em cima do local onde os três estavam conversando em pé.
Resultado desse sinistro premeditado e concebido pelas forças superiores e que somente o que estava por entre e acima das nuvens de chuvas pode explicar, é que o prefeito e o candidato a deputado morreram na hora e Lucas ficou caído totalmente desfalecido.
Derrubados ao chão mais pela força da água vinda naquela bola incolor e cheia de um brilho estranho, o prefeito e o pai de Ester borbulhavam como se um líquido na mais alta temperatura estivesse derramado sobre eles. As faces crispadas parecendo de espanto e dor mostravam os olhos bem abertos como se estivessem mirando algo impressionante e amedrontador.
Por sua vez, Lucas estava apenas desacordado, jogado de bruços no chão como se estivesse dormindo, com o corpo e a face normais, coradas e até parecendo com um leve sorriso no rosto.
Próximo ao seu corpo, em pé majestoso e brilhando intensamente como jamais havia brilhado naquela sua missão junto ao amigo, o anjo do Senhor fazia com que uma névoa se espalhasse pelo corpo de Lucas e um aroma de madeira do oriente, a mesma madeira com que havia sido feita a verdadeira cruz que estava na parede do barracão, se espalhasse ao redor e fosse subindo pelo ar.
Os outros anjos, todos os outros querubins, serafins, tronos, domínios, potências, virtudes, principados e arcanjos, estavam em festa, voando pelos ares, batendo suas asas alegremente, cantando em coro, tocando flautas, fazendo sair sons e melodias magistrais de instrumentos estranhos, brilhantes e reluzentes. Era uma festa de anjos para alegria do anjo do Senhor, que parecia feito um maestro regendo uma orquestra de seres totalmente tomados pelo acontecimento.
Mas por que isso tudo, essa festa toda, essa cantoria e encantamento, se há poucos instantes havia ocorrido ali uma tragédia, com mortes e uma indefinição do quadro de saúde de Lucas? Somente os anjos saberiam responder, somente os anjos têm seus motivos, somente eles sabem e conhecem os desígnios, o presente e o futuro das coisas. Assim, somente eles sabem os motivos daquela festa toda.
Assim que a chuva passou, e mais rapidamente do que qualquer um poderia imaginar, as nuvens enegrecidas sumiram totalmente do céu e o sol começou a brilhar novamente em questão de segundos. Os pássaros cortavam o céu em revoada, a brisa chegava levemente e trazia o perfume gostoso de flores. Mas flores por ali? Ninguém jamais percebeu, mas talvez houvesse um jardim por ali, e o maior jardim do mundo, o mais bonito e o mais florido.
A cidade recebeu a notícia do ocorrido e ficou em silêncio. Não se pode afirmar com certeza o que se passou no íntimo de cada um quando soube da morte dos dois políticos mais importantes do lugar, que eram o prefeito e o candidato a deputado. As más línguas começaram a espalhar que a grande maioria das pessoas até se alegrou com o desaparecimento dos dois, que alguns se pudessem até soltariam fogos e outros comentavam pelos cantos: "Essa hora tão ardendo onde bem merecem", "Quem faz aqui paga aqui mesmo, e com os juros da dor e do sofrimento", "Não eram tão ricos e importantes, por que não deram jeito de não morrer desse jeito?", "Não há mal que não traga um bem", "Deus sabe o que faz".
Por outro lado, a única e verdadeira preocupação de todo o povo do lugar era com o estado de saúde de Lucas. Procurando informações um ao outro e sem que ninguém pudesse afirmar nada com certeza, a única coisa que sabiam é que ele havia sido transferido às pressas para um hospital da capital, pois o estado dele estava gravíssimo e dificilmente conseguiria sobreviver.
Mãos se uniram em orações, velas foram acesas, os corações apertados temiam pelo pior, e por isso mesmo todos faziam uma corrente positiva e de muita fé para que o rapaz conseguisse vencer mais essa difícil batalha, como tantas outras que ele havia enfrentado no seu verdadeiro evangelho de luta e solidão.
Se a chama de uma vela que estava sendo acesa naquele momento pudesse iluminá-lo, refletiria ele deitado num leito de hospital, cercado por médicos e aparelhos, em coma.


continua...




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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