A PÁGINA RASGADA DO DIÁRIO
Rangel Alves da Costa*
"Querido diário, dê bom dia ao sol, dê bom dia à manhã..."; "Querido diário, se você fosse meu namorado seria mais querido ainda, e diário seria também o amor..."; "Querido diário, a bruxa brigou comigo porque derrubei ela da vassoura e segui por aí fazendo feitiços de coração...", "Querido diário, a página de ontem ainda estava em branco e enquanto eu fui conversar com um passarinho rasgaram e roubaram ela do meu caderninho, e logo ontem que ia escrever tudo e ia dizer que...". Eu ia escrever tudo mesmo sobre o que querido diário? Escrevia e ficava se indagando a mocinha.
A mocinha do diário poderia escrever muitas coisas, principalmente sobre si mesma. Poderia se perguntar por que uma menina tão bela e encantadora, estudiosa e educada, que amava as coisas belas da vida, que adorava estar ao lado de quem gostava dela e que respeitava profundamente a todos que realmente merecessem respeito, ainda assim sentia que não era olhada com o carinho que merecia de todos.
E também saberia que muitas pessoas que vivam ao redor não passavam de invejosas, que fingiam amizade, mas no lado ruim da alma ficavam torcendo para que nada de bom acontecesse em sua vida. Se algum dia essas pessoas encontrassem o diário esquecido em qualquer lugar, certamente que a primeira coisa que fariam seria bisbilhotar e depois escrever coisas como "sua feia", "bruxa feia só encontra sapo". E fariam a coisa que mais temia no mundo: rasgar uma página do seu diário.
Certa vez sonhou que haviam rasgado uma página e não dormiu mais pensando em estrelas caindo, em lua cortada ao meio, no sol faltando alguns raios, em nuvens despedaçadas, em pingos de chuva caindo pela metade, em passarinhos sem asas, no arco-íris ferido, na planta sem galhos e em galhos sem folhas, e as folhas sem outono porque haviam rasgado a página do seu diário. Sonhou ainda muitas coisas faltando um pedaço, caindo, destroçadas...
Já pensou, imaginava ela, se rasgam a página que tem um castelo? Como vou entrar se não tem mais porta, não tem mais salões espelhados, não tem mais mistérios, não tem mais encantos, magia, uma bruxinha trapalhona, um rei zangado, uma rainha lindamente triste e um principezinho lindamente lindo? Como vou subir na vassoura da bruxinha e sair procurando o meu príncipe para dizer que escrevi um poema lindo na outra página do diário? E se o meu príncipe quiser ler o poema?
"Sonho com o reino da brisa. E espero o vento para trazer a areia. E espero a ventania para jogar a areia na praia. E espero a chuva para molhar a areia. E espero a manhã para fazer um castelo. E espero a noite para o príncipe chegar. E espero a onda que vem avançar. E espero me banhar com meu príncipe no mar". Será que o príncipe vai gostar?
Será que o príncipe iria gostar do poema? Não sabe por que no sonho haviam rasgado a página do seu diário. E logo a página que tinha o castelo, todo medieval e lindo, com grandes muralhas e torres, com calabouços e guardas, com bandeiras hasteadas bem no alto, com matas fechadas ao redor onde os inimigos se escondem, com cavaleiros de armaduras e cavalos azuis, com as trombetas anunciando que o rei mandou avisar que o príncipe vai casar.
Vai casar com quem príncipe encantado? Todas as meninas do reino são feias e gordas, baixinhas e enjoadas, e por que não procura escolher uma súdita em outras terras distantes, bem bonita e apaixonada, que goste de você de verdade e não somente de suas insígnias e brasões? Será que é por isso que está assim tão triste lá na janela mais alta da mais alta torre? Vejo você tão pequenino e uma lágrima imensa caindo.
Chore não meu príncipe, que amanhã vou sonhar com um diário novinho em folha e uma caixa novinha de lápis de cor. E vou tirar você dessa janela, dessa tristeza, desse medo, dessa agonia...
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com
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