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quarta-feira, 1 de setembro de 2010

LEI DA SOLIDÃO (Crônica)

LEI DA SOLIDÃO

Rangel Alves da Costa*


Um dia, após deixar o quarto onde permaneceu trancando em absoluto silêncio e solidão por trezentos anos, o homem entristeceu ao abrir a porta da casa e enxergar o sol, ver nuvens passeando, passarinhos em revoada, horizontes azuis e flores, e folhas, e arbustos, e matas, e toda a beleza que há no mundo.
Caminhou em direção à montanha, cortou caminhos estreitos, feriu seus pés em espinhos e sentou bem no cume, na pedra mais alto que havia, de onde pudesse ver todo o mundo ao redor. E que belo mundo era aquele aos seus olhos!
Quis levantar e abrir as mãos em oração, mas não pôde; quis gritar bem alto palavras de reconhecimento pela força e existência de Deus, mas não pôde; quis sorrir, cantar, alegrar o coração, mas não pôde.
E não pôde fazer nada disso porque ainda estava marcado pelos trezentos anos de enclausuramento e solidão, porque tudo aquilo ali não tinha a força para afastar do seu ser o vazio, o desânimo e a tristeza.
E foi então que decidiu legislar em causa própria. Desceu da montanha correndo, procurou uma árvore de tronco bem largo, cortou-lhe parte da casca até deixá-lo feito tábua, derramou numa cuia óleo de urucum e com a ponta de uma pena de pavão começou a escrever sua Lei da Solidão, que era mais ou menos assim:
"Art.1º. Esta lei define a solidão a ser suportada pelo indivíduo, limita a sua abrangência e proíbe, com as penalidades cabíveis para o seu descumprimento, todas as formas de manifestação da solidão fora dos casos previstos no presente estatuto.
Art. 2º. Para os efeitos de aplicação desta lei, solidão é a manifestação humana definida como sentimento de rejeição do mundo para com o indivíduo, fazendo com que este se sinta isolado e silenciosamente procurando reencontrar aquilo que está ao seu redor ou distante.
Art. 3º. Será desumana e passível de pena, tanto para o agente como a quem deu causa, a solidão que:
I – Sem justa causa, seja motivada e vivenciada pelo indivíduo no intuito somente de isolar-se do mundo, fugir do outro e recolher-se a si mesmo.
II – Com justa causa, ainda assim extrapola seu estado comportamental e transforma instantes de necessária reflexão interior num prolongado martírio e sofrimento.
III – Imerecidamente, for imposta por outra pessoa ao solitário, seja porque o abandonou ou porque lhe impôs o injusto castigo da eterna desesperança e desilusão.
IV – Sem motivo que justifique, a outra pessoa relega o solitário ao abandono somente para vê-lo sofrer.
Art. 4º. Para os fins desta lei e para caracterizar a solidão, considera-se:
I – tristeza: falta de satisfação pessoal, alegria e vontade de reagir, ocasionando frustração e desânimo;
II – abandono: estar ao desamparo e ao desprezo da pessoa que deveria estar ao lado confortando e dando carinho;
III – angústia: sentimento de que a partir daquele instante tudo está perdido para sempre.
Art. 5º. A solidão que se prolongue no tempo será considerada loucura. Como aos comprovadamente loucos nenhuma pena poderá ser aplicada, todos os solitários deverão escolher o local mais adequado para o seu tratamento ou chorar infinitamente a sua dor.
I – é permanentemente proibido tratar a solidão em quartos de apartamentos acima do terceiro andar e com as janelas abertas.
II – do mesmo modo, nenhum tipo de substância que cause envenenamento poderá estar presente no quarto do solitário, a não ser o próprio e os seus motivos para sumir do mundo.
Art. 6º. Para o caso de infração a quaisquer dos preceitos desta lei, a pena será aplicada em dobro, ou seja, a eterna solidão até a reencarnação".
Assim, depois de criar, redigir e promulgar a Lei da Solidão, o homem foi cumprir sua pena não se sabe onde.




Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
blograngel-sertao.blogspot.com

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